sábado, 25 de dezembro de 2010

Complexo de Vira-latas e o Prêmio Nobel

O Complexo de Vira-latas e o Prêmio Nobel*

Complexo de vira-latas é uma expressão criada por Nelson Rodrigues, quando a seleção brasileira de futebol perdeu para o Uruguai em pleno Maracanã em 1950. Dizia o grande dramaturgo : “Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”. .
O termo poderia ser empregado como sendo um sentimento de inferioridade que o brasileiro sente em relação aos povos estrangeiros. Para Rodrigues “o brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima”.
Como disse também Larry Rohter no The New York Times “dói nos brasileiros que líderes mundiais possam confundir seu país com a Bolivia, como Ronald Reagan fez uma vez, ou que desconsiderem uma nação tão grande - tem 180 milhões de pessoas - como "não sendo um país sério", como Charles de Gaulle fez.”

Ninguém deu importância às biografias em português de Clarice Lispector. Mas quando um autor norte-americano publicou uma biografia da escritora brasileira, por sinal muito elogiada no New York Times, a mídia deu o maior destaque, inclusive a TV. Nosso complexo de vira-lata não faz por menos: entre um produto escrito e editado no Brasil e outro, surgido em país de língua estrangeira, como duvidar do que merece maior reconhecimento?


“No final do ano passado, a revista The Economist brindou-nos com uma matéria de capa cujo título era: “O Brasil decola”. A reportagem chama nosso país de maior história de sucesso da América Latina. Lembra que fomos os últimos a entrar na crise de 2008 e os primeiros a sair e especula que possamos nos tornar a quinta potência econômica do globo dentro de 15 anos.
Não é apenas a revista inglesa que vem falando dos avanços aqui obtidos nos campos institucional, social e econômico nas últimas décadas. Somos hoje referência no mundo e um exemplo para os países em desenvolvimento, vistos como uma boa-nova que surge abaixo da linha do Equador.
Diante disto, pergunta-se se a imprensa brasileira está em sintonia com a mundial – que aponta nossos defeitos, mas reconhece nossos méritos.
Tal dúvida surge porque há um Brasil que dá certo e que aparece pouco nos meios de comunicação. Aparentemente, o destaque é sempre dado ao escândalo do dia.
Isso deixa a sensação de que não estamos conseguindo explicar aos brasileiros o que a imprensa internacional tem explicado aos europeus, norte-americanos e asiáticos.
Tornar públicas as mazelas é obrigação da imprensa em um país livre. Mas falar somente do que há de ruim na vida nacional, dia após dia, alimenta e realimenta a visão negativa que o brasileiro ainda tem de si.
As informações que aqui lê ou ouve contradizem o que lê ou ouve lá fora. No New York Time de 24/05, por exemplo, lê-se: “Os consumidores nos Estados Unidos estão apertando o cinto; os brasileiros estão gastando como se não existisse palavra em português para recessão”. Constatação elogiosa que soa esquisito por aqui.

O jornal dos EUA ainda faz referência a um novo patamar brasileiro de prosperidade econômica, com aumento do emprego e da renda e uma vitalidade “cada vez menos acorrentada à sorte dos Estados Unidos”. Outras mídias, como a revista alemã Der Spiegel, os jornais El País, espanhol, Le Monde, francês, Financial Times, de Londres, vez por outra fazem referências positivas sobre um novo desenho distributivo da riqueza em nosso país. E uma santa previsão de tempos ainda melhores. Mas, a mídia brasileira segundo a máxima rodriguiana, cospe na própria imagem, como um narciso às avessas. E não consegue encontrar nenhum pretexto para a auto-estima.

Porque o Brasil nunca ganhou um prêmio NOBEL ?
O texto de Ozires Silva (Reitor da Unimonte, de Santos; foi ministro da Infraestrutura e presidiu empresas como Embraer, Varig e Petrobras) dá uma boa resposta à esta pergunta: “Em 1994, fui surpreendido com minha eleição como membro da Real Academia Sueca de Engenharia. Durante o formal jantar de posse, em Estocolmo, com a presença do rei Carl XVI Gustaf, debatia com colegas suecos à mesa o motivo pelo qual o Brasil ainda não tinha nenhum cidadão contemplado com o Prêmio Nobel, certamente o mais conhecido e consagrado reconhecimento mundial. Países como Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela, para mencionar apenas a América do Sul, tiveram cidadãos agraciados. Vencendo o constrangimento, um dos colegas suecos comentou: “Vocês, brasileiros, são destruidores de heróis”. E acrescentou que brasileiros indicados devem ter sido retirados das listas de candidatos, muito possivelmente, por cartas e manifestações, duras e ácidas, produzidas por outros brasileiros. Ao contrário dos Estados Unidos, onde, disse ele, há um aplauso generalizado aos candidatos ao Nobel.
Fiquei surpreso, mas concordo que, no Brasil, as pessoas usualmente se sentem constrangidas quanto a produzir elogios, mas são extremamente desenvoltas quanto a fazer críticas. E com isso chego a Eike Batista, um empresário brasileiro realmente de sucesso, empreendedor, hábil para encontrar oportunidades e delas tirar resultados. Tenho visto que, em vez de receber aplausos por sua capacidade de empreender, inovar e produzir riquezas, tem sofrido duros e diretos ataques por seu maior defeito, na visão dos críticos: ter enriquecido! Pode ser que muitos leitores não concordem comigo, mas peço que pensem. Elogios fazem muito bem e sempre têm efeito positivo. Não creio que haja nada de errado em reconhecer o sucesso. Sinceramente, acredito que é melhor cultivar e comemorar vitórias do que amargar fracassos.”

Imaginem então se Lula fosse indicado ao Prêmio Nobel da Paz ? Ia chover milhões de cartas “duras e ácidas” originadas de nossa elite branca, colonizada e reacionária (que fazem parte apenas dos 4% dos brasileiros que reprovam o governo Lula, contra 87% que aprovam) destinadas aos integrantes da Real Academia Sueca; condenando a indicação de Lula. Aliás como aconteceu com certeza com os outros brasileiros indicados ao Prêmio Nobel.



Darcy Ribeiro costumava dizer que temos as elites mais reacionárias do mundo e aquelas que mais internalizaram dentro de si o processo de colonização que implica submeter-se ao senhor estrangeiro, considerar-se sempre dependentes dele, e para manter vantagens como sócios subalternos e agregados, nunca se oporem a ele”, analisa o teólogo, filósofo e escritor Leonardo Boff. Ele identifica que esta estratégia ainda está em vigor na mente das elites políticas brasileiras, que sempre se alinharam ao poder do momento. Primeiro a Inglaterra, agora os EUA.

“Grande parte da mídia é o braço estendido das elites econômicas. É uma mídia empresarial e comercial cujos interesses estão diretamente ligados aos interesses do capital seja nacional seja internacional, sabendo-se que ambos se entrelaçam”, explica Leonardo Boff. “Por isso é uma mídia que tem como ponto de referência os EUA como nação hegemônica. Por esta razão estão sempre alinhados à política externa deste pais.”

O êxito da diplomacia brasileira é festejado em toda parte por governos estrangeiros e pela mídia internacional. Mas na mídia nacional só há espaço (nas páginas impressas e na tevê) para opiniões de certos ex-diplomatas que serviram ao Itamaraty no governo FHC e obstinam-se em desacreditar a política externa e o País em artigos, entrevistas e debates. Revistas como Foreign Policy e Time, dos EUA, a alemã Der Spiegel, os jornais franceses Le Monde e Le Figaro, o espanhol El País, o britânico Financial Times e outros são pródigos em elogios ao novo papel do Brasil no mundo. Já as famílias Marinho, Civita, Frias e Mesquita, em O Globo , Veja, Folha e Estadão, abominam o “protagonismo” de Lula. Esse pecado horroriza Celso Lafer, ex-colega de FHC na USP. De família ilustre, ele foi ministro do Exterior de Collor às vésperas da renúncia e voltou ao cargo nos extertores do governo FHC. Ao atacar Lula em artigo recente, acusou a política externa de “busca de prestígio” e “voluntarismo”. Com Collor e FHC optava pela submissão silenciosa à vontade das potências. Só a elas caberia discutir o que fosse relevante. Ensinou Juracy Magalhães: “Se é bom para os EUA, é bom para o Brasil”. Submissa foi ainda a conduta pessoal de Lafer como ministro quando ia aos EUA: tirava os sapatos para policiais no aeroporto.

Der Spiegel, a mais importante revista semanal de informação da Alemanha, destacou em maio de 2010 – num longo artigo sobre nossa diplomacia, “Lula Superstar” – a ação do Brasil no exterior. Deu ainda a explicação do próprio Lula, de que está curando “antigo complexo de vira-lata” dos nossos diplomatas perante os EUA e a Europa. O que os Lafer, Lampreia & cia. parecem não entender, ao pôr em dúvida a atuação do Brasil – e na ilusão de uma marcha a ré para diplomacia igual à deles, do medo e da omissão – é que o mundo vive processo de mudança, acelerado por um reexame à luz da crise financeira global, da qual o País saiu bem, melhor do que a maioria,


No dia 17 de dezembro de 2010, durante uma aula de abertura da Universidade Aberta do Brasil em Moçambique, o Presidente Lula defendeu a necessidade de integração entre os países do Hemisfério Sul, para que deixem de ser submissos aos do Norte ou que se sintam inferiorizados: "Como tivemos nossa cabeça colonizada durante séculos, aprendemos que somos seres inferiores e que qualquer um que enrola a língua é melhor do que nós. O que queremos agora é levantar a cabeça juntos e construir juntos um futuro em que o Sul não seja mais fraco do que o Norte, em que o Sul não seja dependente do Norte. Se nós acreditarmos em nós mesmos, podemos ser tão importantes quanto eles, tão sabidos quanto eles", afirmou.... Por isso, prosseguiu, é preciso que acabe essa mentalidade de que "eles (Norte) tentam nos subvalorizar e nós aceitamos".

*Daniel Miranda Soares
economista e administrador público, mestre pela UFV

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

WIKILEAKS A nova guerra de Brancaleone

WIKILEAKS
A nova guerra de Brancaleone

Do observatório da imprensa
Por Luciano Martins Costa em 9/12/2010

O novo episódio da guerra entre a mais poderosa nação do mundo e um site da internet, descrito nos jornais de quinta-feira (9/12), pode ser visto como o ensaio de futuros conflitos que nos aguardam com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, num momento em que os poderes nacionais precisam se abrir cada vez mais para compromissos de alcance global.
A feroz perseguição do governo americano ao australiano Julian Assange, criador do Wikileaks, provocou uma reação em cadeia de hackers profissionais e amadores ao redor do mundo. Como resultado, os sites de empresas e outras organizações que colaboraram no cerco a Assange tiveram que sair do ar.

A tentativa de sufocar financeiramente o negócio de Assange provocou retaliações contra a Amazon, o sistema de pagamentos eletrônicos PayPal, a Mastercard e outras empresas. O cerco judicial pode causar problemas a instituições da Suécia, onde Julian Assange está sendo processado por supostos crimes sexuais.
O novo inimigo, uma horda sem líderes que se move por sua própria conta e vontade, pode crescer exponencialmente e causar prejuízos muito mais graves do que os constrangimentos provocados até agora pelo vazamento de intrigas diplomáticas através do Wikileaks.

Lições de Canetti
Por enquanto, trata-se de um movimento anárquico, porém efetivo. Amanhã, essa armada sem comando pode ganhar adesões poderosas e se transformar em oponente de respeito. A mesma cadeia de interesses que faz com que outros governos se aliem, ainda que discretamente e de forma extraoficial, à ofensiva dos Estados Unidos contra Julian Assange, tentando aniquilar seu empreendimento e tirá-lo de circulação, pode se virar contra o sistema.
Na medida em que novos vazamentos revelarem, por exemplo, os bastidores das negociações sobre as mudanças climáticas e os acertos por baixo do pano em torno das bilionárias operações de socorro a bancos e fundos de investimento a partir da crise de 2008, o exército de Brancaleone que começa a se mobilizar em defesa do Wikileaks pode agregar elementos mais poderosos e eficientes, e uma reação inicialmente difusa acabar se transformando em um conflito de grandes proporções.
Seria como alguns cenários descritos no clássico Massa e Poder, do pensador Elias Canetti.
Como ficaria a imprensa tradicional numa circunstância como essa?

Problema para a imprensa
Elias Canetti, cuja obra é considerada um dos mais reveladores ensaios sobre a humanidade do século 20, pode ser convocado também para ilustrar muitos desafios deste século que já avança para sua segunda década.
O conflito entre a nação mais poderosa do mundo e um negócio despretensioso – cujo único produto é a informação que se pretende ocultar – pode ajudar a desnudar o sistema sobre o qual muito se fala e que de fato pouco se conhece.
No momento em que o futuro do poder americano é colocado em xeque por causa de crises financeiras sucessivas e sua fragilidade exposta na ação do terrorismo, o uso excessivo de força contra o criador do Wikileaks pode ser visto como sinal de fraqueza.
À margem da profusão de vazamentos que todos os dias circulam pela internet, e que tem uma pequena parcela publicada diariamente em jornais de todo o mundo, consolidam-se velhas teorias conspiratórias, e o mundo se dá conta de que a imprensa tradicional nunca foi capaz de informar a humanidade sobre como as coisas realmente funcionam.

Dor de cabeça
Um comentário da jurista Maristela Basso, publicado na Folha de S.Paulo, revela que Julian Assange não está desamparado. Pelo contrário, ele ainda pode reverter a situação e obter uma indenização milionária do governo dos Estados Unidos. Se isso vier a acontecer, e iniciativas como o Wikileaks se tornarem dominantes na preferência dos leitores, qual será o futuro da imprensa tradicional?
Por enquanto, os jornais se deliciam com intrigas e selecionam criteriosamente o material exposto pelo Wikileaks, conforme suas próprias conveniências. Mas quanto tempo ainda vai demorar para que seus leitores percebam que, na verdade, a imprensa tradicional sempre esteve do lado do sistema, omitindo do público certas razões de Estado que na verdade escondem interesses muito particulares?
Aquilo que no princípio parecia muito divertido para algumas redações pode acabar virando uma grande dor de cabeça no futuro.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Mídia, a grande perdedora das eleições

Mídia, a grande perdedora das eleições
Francisco Viana De São Paulo

Leio no Google que um jornalista da TV Brasil Central, mantida pelo governo de Goiás, pediu demissão no ar. Motivo: censura interna. Fiquei com a seguinte questão: e se os jornalistas da mídia privada começarem também a pedir demissão no ar? E se os sindicatos de jornalistas começaram a denunciar a censura interna na mídia? O que hoje, nessa reta final das eleições, está de fato ocorrendo nas redações dada a forma com que os veículos de comunicação vêm tratando a candidata Dilma Rousseff?
Não tenho as respostas para tais questões, mas, ao que tudo indica, não há como duvidar: a mídia tradicional é a grande derrotada nessas eleições. Senão a mídia propriamente dita, mas o conceito de neutralidade. No tiroteio para desqualificar a candidata Dilma e incensar o candidato José Serra, a grande vítima foi a verdade factual e os verdadeiros problemas brasileiros. A cobertura dos grandes jornais, com seus colunistas pouco argutos (por conveniência?) para a realidade, com aversão à ideia de que a política mudou e que a esquerda passa a fazer parte, de maneira inescapável, da vida nacional, com um tratamento nada equitativo dos candidatos, com tudo isso, tornou-se o clichê perfeito de uma época que acabou.

O leitor hoje é bem informado. Conhece a mídia internacional, avalia o noticiário, conhece a realidade do país. Não teme o fantasma do comunismo. Desconfia de pesquisas de opinião. Questiona o que lhe é apresentado como fato. Percebe quando a discurso camufla interesses inconfessáveis. Percebe, por exemplo, quando o discurso sobre a liberdade serve de escudo para negar a prática social da liberdade. Ambiciona soluções reais para realidades concretas, como são os casos da violência, do aborto (que mata milhares de jovens todos os anos por ser ilegal e , assim, inibir políticas públicas). É um leitor que desmascara factóides, que não se deixa iludir por discursos de boas intenções. Essa realidade.
A realidade, também, é que mundo da mídia se transformou uma ilusão. O conceito de verdade ganhou dimensão religiosa. É como se fosse uma dogmática jornada da fé, uma fé que se propõe a ser incontestável. Com esse conceito de "verdade", leia-se isenção, é criado um fantasioso exercício do tratamento dos fatos. Questão: qual o sentido dessa prática? Neutralizar mudanças. Combater toda e qualquer tentativa de construção de uma democracia real.

Quando o presidente Lula definiu a imprensa como um partido político, certamente, estava querendo dizer que há uma crise de objetividade. Uma crise porque a sociedade não deseja mais conviver com velhos padrões de "verdade", com o antigo conceito de democracia sem povo. A mídia hoje não se dispõe a contribuir, essencialmente, na discussão dos grandes problemas da sociedade, mas, sim, espetacularizá-los, tranformá-los em mercadoria de consumo.

A verdade é a verdade dos interesses que a mídia defende? É uma questão a procura de respostas. Mas, o dado novo, é que a mídia encontra-se sob suspeita e questionamento. E esse questionamento é da sociedade. Não se trata de censura institucional, mas de uma crítica prática, que nasceu da sociedade para a mídia, não das instituições públicas para a sociedade. Sempre que se crítica a mídia, o recurso à liberdade de expressão é imediato, mas não existe liberdade de expressão da mídia. Existe, sim, liberdade de expressão da sociedade. Não existe registro na história da existência de imprensa livre numa sociedade amordaçada.

O impasse dessa constatação é que a mídia, a despeito da sua natureza manipuladora, é associada ao que existe de melhor na defesa das liberdades individuais e das liberdades públicas. Esse o paradoxo, esse o núcleo profundo do problema. A decadência da mídia por força das suas contradições - o conflito entre interesses e a propalada neutralidade - põe em risco a indispensável defesa das liberdades individuais e das liberdades públicas? Evidentemente que sim. A esperança, no sentido do devir prático, é que as mídias sociais sejam o embrião de um novo conceito de mídia e que a própria fragmentação seja a matriz de um novo conceito de informação. Ou que venha a surgir uma nova geração de empresários da mídia, sensível à realidade da nova sociedade brasileira.

Seja qual for o futuro, um fato é inescapável. A mídia tradicional está em crise. Será que ela existe para que a verdade, no sentido da realidade autêntica, não seja dita? Será que se tornou mais fonte de contra-informação do que fonte de informação? Por que ao criticar o socialismo, por exemplo, não publica no mesmo espaço uma visão a favor do socialismo? Por que semeia a cultura do medo da mudança, quando deveria semear a cultura do esclarecimento, da informação, do diálogo? Por que as notícias alarmantes não têm fim? A liberdade de imprensa é uma ideia modernizadora, como é modernizadora a democracia real. Por que tudo hoje gira em torno de manchetes alarmistas, em torno da condenação de toda e qualquer reforma da sociedade que implique em participação popular?

Toda análise da cultura do medo que ignorar a ação da imprensa ficaria evidentemente incompleta. Entre as diversas instituições com mais culpa por criar e sustentar o pânico a imprensa ocupa indiscutivelmente um dos primeiros lugares. A frase não é minha: Literalmente, é da lavra do sociólogo Barry Glassner, está no livro Cultura do Medo. Ele trata de temas como crime, drogas, minorias, mães de adolescentes, crianças assassinas, micróbios mutantes, acidentes de avião, fúria no trânsito, temas que na definição de Glassner, deveríamos temer cada vez menos, mas tememos cada vez mais(Editora Francis, 2003, p. 33).

No Brasil, a lista, a constatação é inescapável, incorpora a propagação do medo político, a visão de que tudo que implica em igualdade e expressão das grandes massas implica em risco para a ordem, em ameaça à liberdade de expressão. Se a mídia tem liberdade de expressão, por que o presidente da República, os políticos, os empresários, cidadão comum, enfim, não pode criticá-la? Teriam os donos de jornais o monopólio das Sagradas Escrituras? Esse é um tema que veio para ficar. As eleições que agora chegam ao 2o turno, mostraram o que há por trás das cortinas da neutralidade da chamada grande imprensa. As contradições tornaram-se transparentes. Se houver censura no Brasil, não mais será da parte de governos, será a censura social. Como a notícia vem sendo tratada como produto, é certo que o leitor reagirá como reage na compra de produtos que não lhe inspiram confiança: simplesmente virará as costas - deixará de comprar - a mídia que não forma e informa com consistência. Essa é a realidade: nos nossos tempos o cidadão age, não fica se lamentando. Mais do que as companhias de produtos e serviços, pelo papel que exercem ( ou deveriam exercer) jornais, revistas, rádios e televisões necessitam de confiança do público para existir, se não há confiança, falta oxigênio. Morre-se por asfixia.

Francisco Viana é jornalista, consultor de empresas e autor do livro Hermes, a divina arte da comunicação. É diretor da Consultoria Hermes Comunicação estratégica (e-mail: viana@hermescomunicacao.com.br)

Wikileaks: o imperador está nú

Wikileaks: o imperador está nú
Pepe Escobar - Asia Times Online

Presidente Bush : Frank, estou a criar um cargo, e peço-lhe que considere a possibilidade de trabalhar connosco. Serão dias longos e noites perigosas. E você vai trabalhar cercado pela escória de nossa sociedade.
Frank: Estou a ser convidado para trabalhar no seu Gabinete?[Corra Que a Polícia Vem Aí 2, estrelado por Leslie Nielsen]

Digam o que disserem os jornais e televisões, o facto é que 1,6 gigabytes de arquivos de texto numa pen-drive espalhando 251.287 telegramas diplomáticos do Departamento de Estado dos EUA de mais de 250 embaixadas e consulados não vão provocar “um terremoto político” – como se lê na revista alemã Der Spiegel – na política externa da maior potência decadente do mundo.Por trás das múltiplas hipócritas camadas de um ciclo frenético de notícias, 24 horas por dia todos os dias da semana, a política aparece, sobretudo, como um reality show repugnante.

Isso é o que as últimas WikiFugas mostram, em forma escrita, nua e crua. Um Muammar Kaddafi que usou botox e não seria muito activo com a sua sexy enfermeira ucraniana é personagem de “Big Brother”.Embora seja excelente para a televisão, não se pode dizer que seja novidade que, para os diplomatas norte-americanos, o presidente do Irão Mahmud Ahmadinejad é "Hitler", que o presidente do Afeganistão Hamid Karzai é “paranóico”, que o presidente da França Nicolas Sarkozy é “imperador sem o traje”, que o “tolo e incompetente” primeiro-ministro da Itália é doido por “orgias”, que a chanceler alemã Angela Merkel “raramente produz alguma ideia criativa”, que o presidente da Rússia Dmitri Medvedev “é o Robin do Batman Vladimir Putin [primeiro-ministro russo]”, ou que o Amado Líder da Coreia do Norte Kim Jong-il é “velhote flácido”, vítima de “trauma físico e psicológico”.

Mas crer, como a secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton, que as fugas seriam “ataque não só aos interesses da política externa norte-americana, mas de toda a comunidade internacional”; ou que o WikiLeaks, como disse o presidente Barack Obama, cometeu crime grave, é nada além de manifestação de repugnante arrogância imperial. Como se o mundo não tivesse o direito de também fartar-se da mesma comida política podre servida em abundância aos selectos comensais dos palácios do poder em Washington.Clinton deve ter farejado que o sentimento dominante depois de ler os telegramas seria de uma Washington à beira de um ataque de nervos digno de personagem de Almodovar.
Por exemplo, um aliado-chave dos EUA, como Berlusconi, descrito como “ridículo, patético”, “indiferente ao destino da Europa” e perigosamente íntimo de Putin, do qual parece “o porta-voz”, visto como ameaça equivalente a Ahmadinejad. Até que ponto chega a paranóia? A embaixada dos EUA em Moscou, por falar nisso, descreve Putin como um “cão alfa” que comanda a Rússia, virtualmente “um Estado-máfia”; alguém mais cínico lembrará que a mesma definição aplica-se ao ex-vice-presidente Dick Cheney durante a era George W. Bush.

Em todo o mundo, quem tenha QI acima de 75 já desconfia que os diplomatas dos EUA espionam os próprios colegas na ONU (por ordem de Clinton); que Washington comandou um bazar de liquidação para obrigar pequenos países a aceitar prisioneiros de Guantánamo; que o establishment militar/de informações do Paquistão está articulado com os Taliban; e que o rei saudita Abdullah bin Abdul Aziz, esse defensor paradigmático da democracia e dos direitos humanos, exigiu que os EUA ataquem o Irã.

O espectáculo tem de continuar. Possibilidade muito mais sumarenta é lembrar que, doravante, nenhum dos cidadãos mais ativos do mundo jamais voltará a crer no que lhes seja empurrado como “fato” ou como “verdade” naquelas cosmicamente tediosas sessões de “conferência diplomática/governamental/militar com a imprensa e fotógrafos”.Merece especial atenção o telegrama em que se lê que o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu é “elegante e sedutor, mas nunca cumpre o que promete” (promessas como continuar a construir colonatos na Cisjordânia e bombas, bombas, bombas sobre o Irão.)O reality show das WikiFugas prosseguirá, com novidades online aos borbotões.

Pelo menos o espectáculo demonstra, mais uma vez, que a boa informação está na Internet – não nos média-empresariais globais; e que os cidadãos globais devem fazer dela o melhor uso possível para desmascarar, e rir, do poder. É salutar aprender que o imperador, em segredo, fala mal dos amigos e sicofantas, tanto quanto dos inimigos. Também é salutar aprender que o imperador é inimigo da democratização da informação. Mas agora, que já se sabe que o imperador está mesmo nu, devemos agradecer muito aos autores dos telegramas, seus amigos, inimigos e sicofantas, por nos oferecerem esse impagável reality show – espécie de continuação de “Corra que a Polícia vem aí”. Pena que o grande Leslie Nielsen, que morreu no domingo, não esteja aqui, para rir connosco.

(*) Tradução do coletivo da Vila Vudu.