terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A crise é muito mais política do que econômica

A crise é muito mais política do que econômica

(artigo publicado originalmente no jornal Diário Popular em 15/12/2015, contracapa). http://issuu.com/jornaldiariopopular/docs/15_12_2015_00_21_03/1?e=4106722/31980345

      A previsão dos analistas de mercado para a economia brasileira em 2015 seria de uma recessão em torno de 0,7% a 1,3% de queda no PIB; em condições normais sem considerar aspectos políticos. As coisas complicaram a partir do resultado das eleições de 2014, em que a oposição não aceitou o resultado das urnas e criou um tremendo impasse político a partir daí. O governo também não soube se proteger e perdeu várias batalhas, principalmente a presidência da Câmara dos Deputados que passou a ditar uma pauta bomba, exacerbando despesas públicas. Os rugidos negativistas da mídia encontraram o parceiro ideal numa oposição obcecada em derrubar Dilma a qualquer preço.A birra da oposição se perpetua e contamina o cenário político e dos meios de comunicação que passam a gerar e exagerar um clima de pessimismo na economia, diminuindo expectativas de investimentos. Para complicar a Operação Lava Jato que investiga corrupção na Petrobrás e sua cadeia produtiva, atinge as maiores corporações brasileiras ligados ao setor:  "Não podemos ignorar o fato de as empresas investigadas não poderem mais operar negócios, terem acesso ao crédito e às licitações. A verdade é que a cadeia de petróleo e gás sofreu um imenso impacto", disse o diretor do Ipea, André Calixtre. Só neste setor há uma queda de 5% no nível de investimentos do país. Segundo a BBC, “os impactos diretos e indiretos da operação poderiam ser de R$142,6 bilhões em 2015 – algo em torno de 2,5% do PIB”. Portanto uma recessão de coisa de 1% negativo pode chegar a menos 3,5;4%. Ou seja a crise política multiplica por 4 a crise econômica. Haveria uma forma de enfrentar a corrupção no mundo do petróleo sem o custo devastador que se apresentou? Muito provavelmente. Moro não pegou uma calculadora ou tudo foi intencional para provocar a recessão?

      Para Marcio Pochmann, ex-presidente da Fundação Perseu Abramo, houve uma opção pela recessão. Para ele, a crise econômica foi construída por uma crise política que se estabeleceu em função do resultado eleitoral. “Nós tivemos um impasse político e tem a ver com a forma como o governo se organizou a partir desse resultado eleitoral. Houve um erro na sucessão no Legislativo que acabou provocando o acirramento dentro da base do governo.  Então, isso resultou num impasse. E essa crise política contaminou a economia. Não aconteceu nada de substancial que justificasse termos uma piora na situação econômica, portanto, no meu modo de ver, é de natureza política.”....  Segundo Pochmann, “ao abandonar a trajetória da política econômica anterior, aceitando o diagnóstico da oposição e passando a governar com o programa dos perdedores, o Brasil terminou por confirmar posteriormente o vaticínio neoliberal. Não há saídas positivas sem a retomada do crescimento econômico, desprendendo-se radicalmente da dominância financeira.”  Para este economista, isso nunca aconteceu nos anos 2000, pelo contrário....se havia piora no quadro internacional, o Brasil negava essa piora e estimulava o crescimento econômico enfrentando o desemprego e a pobreza. Agora há uma outra orientação.

       Para Wilson Cano, professor do Instituto de Economia da Unicamp, estamos em crise há 35 anos: década de 80 - crise da dívida externa e fragilização do Estado; anos 90 - abertura comercial e instauração do neoliberalismo, privatização e valorização cambial que acabou com a indústria nacional. O pior é que não foram só os governos “liberais” que fizeram isso - os governos do PT deram continuidade à dominância financeira neoliberal, a despeito de suas progressistas políticas sociais e de uma nova postura na política externa.  Para este economista a predominância do capital financeiro nas relações econômicas internacionais e a política neoliberal ampliam-se a partir dos anos 80...O capital financeiro passa a dominar o capital produtivo. O capitalismo, com sua predominância financeira, nunca foi tão voraz e irracional, nunca criou tantos miseráveis como hoje, e nunca alimentou e realimentou tantas guerras como nos últimos 30 anos! Soltaram a fera, com a desregulamentação do sistema financeiro, agora, que se cuidem todos…Hoje o mundo trabalha para pagar juros ao capital financeiro internacional em todos os países capitalistas e não é à toa que as dívidas públicas e privadas cresceram exponencialmente e quem ganha é o capital rentista especulativo. Os governos estão cortando gastos com benefícios sociais e educação na Europa para sobrar dinheiro para pagar o capital rentista. No Brasil, as razões da ingovernabilidade são causadas por um orçamento em que os juros da dívida perfazem a metade do orçamento federal e 95% do deficit público. 

      Ainda segundo Márcio Pochmann, a dominância financeira é o maior entrave para o crescimento do país. Enquanto 99% da população tenderão a conviver com a redução nominal do PIB estimada em 745,3 bilhões de reais em 2015, por conta da recessão econômica, o 1% mais rico receberá como ganho financeiro 548 bilhões de reais adicionais devido à alta dos juros. A altíssima taxa de juros (30 meses seguidos de elevação da taxa Selic) inviabiliza o crescimento econômico e eleva o custo do setor produtivo. Dessa forma, a dominância financeira gera recessão econômica e mais inflação. O único ensaio desenvolvimentista que houve nos últimos 20 anos foi durante o segundo mandato do governo Lula (2006-10) quando houve queda brusca dos ganhos financeiros. Nos outros períodos os ganhos financeiros foram sempre maiores que os retornos produtivos:  entre 2011 e 2015, a taxa de retorno das atividades produtivas decresceu 89,7%, em média, o ganho financeiro subiu 39,8% no mesmo período. Com a atual taxa básica de juros praticada insistentemente pelo Banco Central, dificilmente a atividade produtiva obterá retorno positivo, capaz de competir com a dominância financeira.

Daniel Miranda Soares é economista, ex-professor de Economia com mestrado pela UFV.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Um outro olhar sobre a crise : os bilionários americanos corrompem a política

(Artigo revisado e ampliado, originalmente publicado no endereço: http://www.diariodoaco.com.br/noticia/90445-7/opiniao/um-outro-olhar-da-crise-os-bilionarios-americanos-corrompem-a-politica.     Diário do Aço, 18/02/2015. ).

       Pouca gente viu os excelentes documentários da série “Porque Pobreza?” que são exibidos em canais de TV educativos. Um deles é “Park Avenue: Dinheiro, Poder e o Sonho Americano” realizado pelo jornalista Alex Gibney, que analisa com cuidado as relações entre os novos ricos e os novos pobres nos EUA nos últimos 30 anos, tomando como modelo a rua Park Avenue. A rua passa por Manhattan onde ficam os prédios mais luxuosos de Nova York e onde moram bilionários detentores de fortunas financeiras, dos barões das falcatruas aos controladores de fundos de investimentos.  Do outro lado da rua, ao sul do Bronx, fica o distrito eleitoral mais pobre dos EUA com 700 mil pessoas - destas cerca de 40% vivem na pobreza. Aqui, os últimos 30 anos foram bem diferentes do que se viu no Park Avenue de Manhattan. As pessoas viram seus salários diminuirem e o custo de quase tudo chegar às alturas. Eles perderam seus empregos durante a recessão causada pelos banqueiros do outro lado do rio. E acabaram em situação ainda pior do que a geração passada. Neste distrito o desemprego chega a 19%  e algumas famílias tem dificuldades até para por comida na mesa.
       É muito difícil de sair da extrema pobreza nos EUA. Isto quase nunca acontece. Isto é exatamente o oposto do que as pessoas pensam sobre os EUA - a terra das oportunidades. Para Jeffrey Sachs (prof. da Columbia) quando ele era jovem os EUA se orgulhavam de serem uma nação de cidadãos de classe média, com um pequeno grupo de ricos e um pequeno grupo de pobres. Mas nos últimos 30 anos esta relação se inverteu:  a receita pública era divida igualmente entre todos no gráfico 1947-1972 (1% aos super ricos ,10% ricos e 90% destinada ao americano médio). A partir do final dos anos 70, os 90% que estavam na base viram sua pizza ser totalmente devorada pelos 1% do topo - os mais ricos estão ficando com um percentual enorme de todos os ganhos da economia : cerca de 2/3  com os super-ricos, os ricos cerca de 1/3 e a classe média ficando com a menor parte, perto de 1% - invertendo as posições.
       Michael Gross (autor do livro “740 Park Avenue...”) diz que um pequeno grupo de multibilionários, os 1% dos 1% que moram em pouquíssimos lugares em N.York. Entre os prédios mais luxuosos de NY, o nº 740 da Park Avenue moram mais bilionários do que em qualquer outro prédio do mundo. São 31 moradores e cada apartamento tem cerca de 1860m². A maior parte destes são executivos de hedge fund. Dentre os principais moradores encontramos: John Thain (CEO na época da derrocada Merril Lynch); Ezra Merkin que trabalhou para Bernie Madoff; David Koch (o mais rico do prédio) ; Steve Schwartzman (foi executivo do Lehman Brothers); entre outros.
      O prof. Jacob Hacker (cientista político da Univ. de Yale) afirma que a gigantesca acumulação de riqueza não tem a ver só com o trabalho , mas com os ricos  que usam o sistema político a favor deles. Houve um ciclo que reforçou isso. Eles investiram em políticas que os favoreceram e ainda reinvestiram esse dinheiro na política. Para entender até que ponto o dinheiro influencia Washington, Gibney contatou o símbolo máximo da corrupção - o ex-lobista Jack Abramoff (ficou 4 anos na cadeia), que diz : “.... hoje os congressistas usam os serviços dos lobistas para redigirem os projetos de lei no esboço exato do que eles querem e isso envolve pagamento em dinheiro. As campanhas políticas custam milhões e quem tem dinheiro pede algo em troca. ... Eu fazia assim e eu sei o que fazia” -  afirma o ex-lobista.
       Mas quando tudo isso começou ? Quando os ricos começaram a controlar Washington ? Segundo o prof. Hacker de Yale tudo tem a ver com a mobilização dos empresários que ocorreu nos anos 70.  Os empresários seguiram os conselhos do futuro juiz da Suprema Corte, Lewis Powell que fez um memorando muito convincente para a Câmara do Comércio determinando que os empresários se unissem, basicamente contra os reformistas e o poder político dos trabalhadores e líderes de massa como Ralph Nader. Ele pediu que as grandes corporações se esforçassem mais para moldar a política americana e as leis. E os empresários o atenderam. O poder lobista dos empresários cresceu vertiginosamente a partir dos anos 70  Eles investiram quantias enormes na política. O resultado foi o fim das políticas que beneficavam as classes médias e os pobres dando início às políticas a favor dos ricos. O lobby era uma indústria de US$400 milhões nos anos 80  e hoje é uma indústria de $4 bilhões.
      Jeffrey Sachs (prof. da Columbia) : “Um exemplo da influência que os bilionários podem ter no governo é algo no código tributário chamado de “provisão de juros transitados”. Operadores de hedge fund e  private equity como Schwartzman pagam 15% de impostos sobre sua renda.... os empresários mais ricos são taxados em um percentual menor do que o mercadinho da esquina”. Os democratas tentaram acabar com estes juros, mas não conseguiram. Por quê ? A influência dos bilionários corromperam também os democratas: esse é o exemplo perfeito de como o dinheiro manda na política americana hoje em dia.
      E nenhum dinheiro manda tanto quanto o de David Koch e seu irmão Charles. Esse magnata de direita é o morador mais rico do Park Avenue 740. Juntos, eles influenciam a política americana mais que qualquer outra pessoa. Doaram milhões a grupos de reflexão de direita (CATO Institute, Ayn Rand Institute, Capital Research Center, Mercatus Center,  etc.)  Financiaram Universidades, programas que promovessem a desregulamentação. Para eles o modelo ideal é um mercado livre de impostos - o supra sumo do paraíso em sociedade. Ofereceram grande apoio financeiro ao movimento Tea Party. que divulga muito as idéias de Ayn Rand que disse em 1959: “eu me oponho a todas as formas de controle, sou a favor de uma economia livre e sem regulamentações”. No mundo de Rand quem precisa de ajuda é um vagabundo ou um parasita. Quem quer ajudar os outros é um vilão. Seus heróis tem orgulho de serem os mais egoístas possíveis. Perguntaram a Ayn Rand : “você não gosta do mundo altruísta em que vivemos” ? Resposta: “dizer que não gosto é pouco, eu o considero um mal”. Para eles ser ganancioso é bom, o individualismo é prioridade em relação aos interesses da coletividade. Eles não aceitam a idéia de que se você é pobre e sua educação é ruim, você não tem a mesma oportunidade de competir que os ricos. Parece que os ideais da direita americana foram copiados pela direita brasileira - vide oposição que fizeram ao Bolsa Família, às cotas para universidades e a outros programas de distribuição de renda.
       Quase todos concordam que  educação é a chave para a  ascensão social, mas a universidade está cada vez mais inalcansável. O custo subiu mais de 500% desde 1980 - sem um diploma universitário é muito mais difícil conseguir trabalho. Com 12 milhões de americanos desempregados os programas de educação e treinamento estão sendo cortados por ambos os partidos em troca do corte de impostos para os ricos. Tim Smeeding (Instituto de Pesquisa e Pobreza) :  “1 em cada 7 americanos recebem vales-alimentação. Mais da metade são crianças e idosos: 41% deles moram em abrigos”. Como não conseguem emprego eles precisam da rede de proteção. Paul Ryan, estrela do Tea Party, quer cortar em 134 bilhões o programa de vale-alimentação nos próximos 10 anos - sem estes recursos a rede de proteção seria destruída - para ele a rede de proteção é uma rede de dormir. Ou seja, bolsa de ajuda para os pobres é Bolsa Vagabundagem como diz também a direita brasileira.
       Para Jeffrey Sachs: “Os impostos são o preço que pagamos pela civilização. Sem impostos não há civilização é simples assim....Os impostos pagos pelos milionários diminuíram mais de 25% nos últimos 20 anos. E para muitas pessoas extremamente ricas os impostos caíram quase 50%.” A maior parte começou no governo Bush. O corte de impostos aumentou a dívida pública americana (o corte de Bush acrescentou 2,9 trilhões) e com a proposta de Paul Ryan a dívida aumentaria para 4,6 trilhões nos próximos 10 anos. A concentração de renda aumentou nos EUA: os CEOs (altos executivos) ganhavam 20 vezes mais que um trabalhador comum em 1965; hoje eles ganham 231 vezes mais. Então, pergunta Gibney, o que está havendo ? Eles estão ganhando mais porque merecem ? O que é difícil de entender é na insistência dos ricos em cortar mais impostos já que eles possuem bem mais do que nós.  A riqueza é criada, mas a pobreza também, sem a democracia social todos os ganhos da economia vão para quem está no topo; enquanto nossos políticos dependerem do dinheiro dos ricos para se elegerem eles farão leis para proteger os castelos de riqueza do outro lado do rio....Um rio que se tornou um fosso profundo e proibido.

Daniel Miranda Soares é economista, MSc; ex-professor universitário.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Para entender a crise econômica mundial


 O ABC DA CRISE ECONÔMICA MUNDIAL
09/01/2015 - 16h59  Diário do Aço
Daniel Miranda Soares
 (artigo revisado, publicado originalmente no jornal Diário do Aço, no endereço : http://www.diariodoaco.com.br/noticia/89046-7/opiniao/o-abc-da-crise-economica-mundial )


David Harvey, formado pela Universidade de Cambridge, de orientação marxista  é professor da Universidade da Cidade de Nova York e um dos principais nomes da Geografia Humana contemporânea, tendo sido agraciado em 1995 com o Prêmio Vautrin Lud, o Nobel da Geografia. Publicou "Para entender o Capital: Livro I" e "Para entender o Capital: Livro II e III", traduzidos em português. Segundo Harvey as origens da crise atual do sistema capitalista tem início nos anos 1970. Para os capitalistas o problema era que os salários dos trabalhadores do Primeiro Mundo estavam relativamente muito elevados. Portanto para eles a grande questão era o controle do trabalho, da oferta de trabalho.

Porque estavam muito elevados? A força de trabalho era muito organizada, tinham poder sindical e tinham poder político e exerciam esse poder através dos partidos políticos. O capital “precisava” disciplinar essa força de trabalho. Para Harvey essa disciplina foi feita de diferentes maneiras: mudanças tecnológicas, globalização e imigração. No início eles acharam que poderiam resolver o problema através da imigração - então abriram suas portas aos imigrantes - os franceses com a entrada de trabalhadores magrebinos; os alemães com a entrada dos turcos; os ingleses com o povo de suas ex-colônias e nos EUA com uma enorme reforma na lei de imigração em 1965 que permitiu que pessoas do mundo todo fossem para o país. Pensavam que com o aumento da oferta interna do trabalho os salários cairiam. Mas não foi o suficiente.

Aí vem a globalização a partir dos anos 1980 quando a produção se transfere para diversas áreas do mundo emergente à procura de salários baixos. Assim boa parte do que era o centro do capitalismo acabou se desindustrializando: em boa parte dos EUA, a indústria desapareceu assim como na Inglaterra e na Alemanha. Ela foi deslocada. É um modelo de expansão geográfica muito diferente que se baseia nas expansões das multinacionais que continuam com suas sedes no Norte e estabelecem suas bases produtivas no Sul: China, Brasil, México, Taiwan, etc... Mas é uma globalização diferente da que aconteceu no século XIX quando os países centrais exportavam produtos industrializados para a periferia; agora a periferia se torna produtora destes bens industrializados em vários pontos ao redor do mundo.

Quanto às mudanças tecnológicas - houve muitas e significativas mudanças - nos anos 1970 não havia laptops, celulares, computadores pessoais, internet, etc. Harvey afirma que as concepções mentais eram muito diferentes incluindo é claro, as sensibilidades políticas. Ele diz: “Nós nos preocupávamos muito mais com solidariedade social, essas coisas. Hoje somos muito mais individualistas. Nós nos tornamos indivíduos ao telefone, no computador. Tudo isso mudou e o dia a dia mudou radicalmente.”
 O mundo se tornou mais individualista e isso diminuiu o poder dos trabalhadores se organizarem. Portanto o novo regime que surgiu a partir de então - que podemos chamar de neoliberalismo - na década de 1980, Margaret Thatcher, Ronald Reagan, o general Pinochet entre outros colocaram um ponto final no poder político dos trabalhadores.    

Mas então como se caracteriza o neoliberalismo? Segundo Harvey, com o poder do capital financeiro. Ao reprimir trabalhadores e salários a participação dos salários na renda nacional caiu em quase todos os países (com exceção de alguns países da América do Sul no séc. XXI).  Nos EUA nos anos 1970 um chefe de executivo ganhava 30 vezes o salário de um empregado médio - agora eles ganham 350 vezes mais. A classe média diminuiu. O capitalismo prospera com a precarização do trabalho - mantendo salários baixos e aumentando os lucros - o resultado é um sistema que cria pobreza e também desemprego.

Então surge a questão: o que acontece com o mercado quando você retrai os salários? Nos EUA a resposta foi: “Dê crédito a eles”, deixe que comprem a crédito. Assim surgiu a economia do débito que é esse enorme negócio que os bancos entraram. As famílias americanas triplicaram suas dívidas em 30 anos. A queda na demanda causada pelos baixos salários foi compensada pelo aumento da dívida. Mas quando os salários caem e a dívida aumenta, em algum momento há o problema de como as pessoas pagarão a dívida. 
  
As famílias americanas já vinham se endividando ao longo dos anos 1990 e a partir de 1995 o mercado imobiliário voltou se expandir, assim como o endividamento - crédito ao consumidor e hipotecas. Com a crise de 2000-2001, do mercado de ações, o mercado imobiliário ganhou estímulos e se expandiu mais vigorosamente. As famílias, já endividadas, elevaram a contratação de empréstimos, fazendo novas hipotecas e adquirindo novas linhas de crédito.
A partir de 2003, com a intensificação da valorização dos imóveis e esgotamento dos clientes tradicionais, o crédito foi facilitado para as famílias sem histórico de crédito, sem emprego e sem renda - o subprime. Como os empréstimos subprime eram dificilmente liquidáveis, os bancos arquitetaram uma estratégia de securitização desses créditos. Para diluir o risco dessas operações duvidosas os bancos juntaram-nas e transformaram a massa daí resultante em derivativos negociáveis no mercado financeiro internacional, cujo valor era cinco vezes superior ao das dívidas originais.

Assim, criaram-se títulos negociáveis cujo lastro eram esses créditos "podres". Foi a negociação em enormes quantidades desses títulos que provocou o alastramento da crise, de origem estadunidense, para os principais bancos do mundo. Tais papéis, lastreados em quase nada, obtiveram o aval das agências internacionais de classificação de risco, obtendo chancela máxima - AAA - geralmente dados a títulos bem mais sólidos como os do tesouro americano.  Todos os bancos foram atingidos, porque todo o sistema financeiro estava interligado na multiplicação destes papéis. Quando os juros dispararam nos Estados Unidos - com a consequente queda do preço dos imóveis - houve inadimplência em massa. A mesma classe média detentora de tantas ações, teve seu patrimônio (imobiliário) depreciado e começou a não pagar as parcelas de hipoteca, levando as hipotecadoras a terem prejuízos vultosos. 
 
A empresta R$ 100.000 ao elemento B a uma taxa de juros de 1% ao mês; o B empresta ao C os mesmos R$ 100.000 a uma taxa de 2% ao mês, até aí A e B são credores de R$ 100 mil cada, totalizando R$ 200.000; C empresta os mesmíssimos R$ 100 mil a uma taxa de juros de 3% ao mês para D; até então, A, B e C são credores de R$ 100 mil cada, totalizando R$ 300 mil. Ou seja, todos eles são credores do mesmo capital. No exemplo colocado, houve a "geração" de R$200 mil virtuais a partir de R$ 100 mil reais. Puro capital fictício, sem lastro real, alavancagem multiplicada várias vezes de um valor original muito menor. Foi isso o que aconteceu com o mercado americano.

Em alguns casos a alavancagem chegava a 50 por 1. Quando os credores deixaram de pagar suas dívidas a coisa se propagou em massa atingindo todo o sistema financeiro em todo o mundo. Nos EUA cerca de 7 milhões de famílias  perderam seus imóveis ou cerca de 30 milhões de pessoas; foi um dos maiores movimentos de transferência de direitos de propriedade privada na história americana. A acumulação por espoliação - foi como tomar das pessoas seus bens de valor - também aconteceu na Espanha, Irlanda e Leste europeu (um milhão de pessoas perderam suas casas na Hungria). A crise se propaga com queda na demanda por bens, queda na produção, aumento do desemprego, queda de salários etc. aumentando o ciclo.  
      
Para Harvey nos últimos 30 anos o neoberalismo promoveu o capital financeiro, sob sua forma especulativa. Boa parte dos investimentos não foi para a produção, mas para ativos, papéis, ações e quotas de empresas, permitindo que se ganhe dinheiro jogando com o dinheiro.
A pressão em cima de empresas como Petrobrás, Cemig, Copasa e Sabesp é no sentido de abrir mais seu capital, aumentar dividendos aos acionistas, distribuindo mais lucros em vez de mais investimentos produtivos (deu certo para as últimas três). É emblemático a pressão que os neoliberais estão fazendo para abrir o capital da Caixa Econômica Federal (empresa 100% estatal com o menor juros da praça que gerencia programas sociais do governo). Imagine a pressão que vão fazer para distribuir todo o lucro do banco aos acionistas e deixar a empresa com pouquíssimos recursos para investimentos. É o que acontece  quando o sistema financeiro passa a dominar empresas de capital aberto. A Cemig ficou com poucos recursos para investir sucateando boa parte de seu patrimônio. A Sabesp distribuiu R$4 bilhões dos lucros aos acionistas e agora está pedindo R$3 bilhões ao governo federal. Promovendo a desregulamentação, ao invés de se dar uma retomada da expansão econômica, houve uma gigantesca transferência de capitais da esfera produtiva para a especulativa. Porque, como dizia Marx, o capital não está feito para produzir, mas para acumular. Se ele encontra melhores condições — maior retorno, menos tributação, liquidez total — ele se concentra na esfera financeira.

Daniel Miranda Soares. Economista, Msc. Ex-professor e EPPGG aposentado.