segunda-feira, 30 de setembro de 2019


A CHINA ESTÁ SE TORNANDO A MAIOR POTÊNCIA 

ECONÔMICA DO MUNDO.

Este artigo da BBC News Brasil faz uma análise ligeira de como a China será a maior potência do planeta dentro de poucos anos. Os dados são corretos embora no final o autor tendeu a simplificar bastante os aspectos políticos chineses, relacionados à revolução comunista, impregnados de preconceitos ocidentais. Merecia uma análise melhor mas dá uma boa idéia dos aspectos sócio-econômicos.

70 Anos da Revolução Comunista na China: como país pobre e rural se tornou potência mundial em 4 décadas (título original).

Redação BBC News Mundo
Quando Mao Tsé Tung (ou Zedong) chegou ao poder em 1949, a China estava dominada pela pobreza e devastada pela guerra.
Nesta terça-feira (1º), quando se completam 70 anos do triunfo dos comunistas, o país está radicalmente diferente: é uma potência mundial de primeira grandeza e aspira chegar ao topo da economia global.
Mas seu "milagre econômico", único na história, não se deve necessariamente ao "Grande Timoneiro", mas a uma campanha impulsionada por outro líder comunista, Deng Xiaoping.
A chamada "Reforma e Abertura" conseguiu tirar 740 milhões de pessoas da pobreza, segundo dados oficiais.
Sob a ideia de um "socialismo com traços chineses", Xiaoping rompeu com o status quo e implementou uma série de reformas econômicas, centradas na agricultura, num ambiente liberal para o setor privado, na modernização da indústria e na abertura da China para o comércio exterior.
Esse percurso afastou o país do comunismo de Mao Tsé Tung e "rompia as correntes" do passado, nas palavras do atual presidente chinês, Xi Jinping.

Um país pobre

A mudança de curso começou em 1978.
À época, a China era uma nação bastante diferente do que vemos hoje, em que equipara-se ao nível dos Estados Unidos e da União Europeia.
Era um país pobre, com um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 150 bilhões e uma população de 800 milhões de pessoas. Hoje, são 1,38 bilhão de habitantes e um PIB de US$ 12 trilhões, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU).
Mao, o histórico fundador da República Popular da China, havia morrido anos antes das mudanças de Xiaoping, deixando um controverso legado.
Entre seus grandes projetos estão o Grande Salto Adiante (1958-62), que buscava transformar a economia agrária do país e provocou uma escassez de alimentos que levou à morte de ao menos 10 milhões de pessoas (fontes independentes falam em até 45 milhões de mortos); e a Revolução Cultural (1966-76), uma campanha de Mao contra os partidários do "capitalismo", que também levou a milhões de mortos e paralisou a economia nacional.

Foi nesse cenário de pobreza e fome que Deng Xiaoping, então secretário-geral do Partido Comunista da China), propôs suas reformas.

Nova fórmula

Xiaoping optou pelas chamadas "quatro modernizações" e uma evolução da economia na qual o mercado teria um protagonismo crescente.
Para ele, não importava se o sistema econômico chinês era comunista ou capitalista, mas sim se funcionava. "Não importa se o gato é preto ou branco desde que cace ratos", afirmou o chinês em um discurso na conferência da Liga da Juventude Comunista da China.
Seu programa foi ratificado em 18 de dezembro de 1978 por parte do comitê central do Partido Comunista da China e tornou a modernização econômica sua principal prioridade.
Nos anos seguintes, foram colocadas em prática mudanças que até então eram consideradas bastante ambiciosas e enfrentaram resistência da ala mais conservadora do partido no poder.
O setor agrícola, por exemplo, abandonou progressivamente o sistema maoísta de economia rural planificada, que permitiu incrementar a produtividade e tirar regiões do país da pobreza, fomentando a migração de mão de obra para zonas urbanas.
Também floresceram as cadeias do setor privado e, pela primeira vez desde a criação da República Popular em 1949, o país se abriu para investimentos estrangeiros.
Se na economia planificada o Estado determina o tipo, a quantidade e o preço das mercadorias que serão produzidas, na economia de mercado são as forças da oferta e da demanda que estabelecem o que é comprado e vendido.
Em sua cruzada para modernizar e fazer crescer a economia, o líder chinês incentivou sua equipe a aprender com as potências ocidentais.
Foram criadas também zonas econômicas especiais, como a da cidade de Shenzhen, que sofreu uma transformação incrível e hoje é conhecida como o Vale do Silício chinês.



Essa abertura ao exterior contribuiu para aumentar a capacidade produtiva da China e fomentar novos métodos de gestão.
Depois de um longo processo, as mudanças permitiram que a China conseguisse entrar na Organização Mundial do Comércio em 2001, ingresso que lhe abriu definitivamente as portas para a globalização e catalisou seu progresso econômico.
Assim, em 2008, quando a crise econômica global estourou e o Ocidente saiu em busca de novos mercados, a China conseguiu se destacar entre todos os outros e se converteu na "fábrica do mundo".




Apesar do boom econômico, a China luta agora para se descolar dessa função: quer deixar a manufatura para trás e se tornar um país conhecido pela inovação.
À medida que o gigante asiático amadureceu, o crescimento do seu PIB desacelerou significativamente.
Se em 2007 era de 14,2%, em 2018 esse percentual de expansão foi reduzido para 6,6%.
Mas se olharmos mais para trás, desde 1980, o tamanho da economia chinesa foi multiplicado por 42.
Até 2030, os economistas estimam que o crescimento do país será reduzido a aproximadamente um terço do percentual atual.
Mas ainda assim seria suficiente para superar os Estados Unidos como a maior economia do mundo.

E as mudanças políticas?

A despeito do progresso econômico, as reformas trouxeram também consequências negativas para o país, como a alta desigualdade social e a grave contaminação do ar em diversas cidades chinesas.
Mas, segue intacto o rígido sistema de governo de partido único no país inaugurado com a revolução.
Críticos e ativistas denunciam uma crescente repressão dos direitos humanos e uma concentração de poder ainda maior em torno do atual presidente Xi Jinping, responsável por restringir ainda mais as liberdades da população.
Desde que ele aboliu o limite temporal de sua Presidência, no ano passado, as notícias sobre descontentamentos com o governo cruzaram as fronteiras chinesas.
Seus críticos o acusam de concentrar ainda mais o poder e de promover uma campanha de culto a sua personalidade em nível inédito desde os tempos de Mao.
O mandatário também tem estado sob a mira da comunidade internacional por conta das denúncias sobre sistemas de vigilância massiva da população, de queixas de trabalhadores por jornadas laborais desmedidas e de detenções de membros da minoria muçulmana em campos de detenção na região de Xinjiang.
No aniversário de 40 anos da "Reforma e Abertura", em dezembro passado, o mandatário chinês enfatizou a importância da "liderança" do Partido Comunista Chinês em seu discurso no Grande Palácio do Povo de Tiananmen, praça de Pequim onde o Exército reprimiu com violência manifestações a favor de reformas políticas, deixando um número desconhecido de mortos.
Esse obscuro capítulo da história recente da China segue sendo um tabu, como qualquer crítica ao sistema político chinês.
Fonte: BBC NEWS BRASIL.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019



COMO SER UM ANTICAPITALISTA NO SEC. XXI

Erik Olin Wright

Neste artigo do professor Wright ele analisa as experiências do socialismo real do séc. XX e as teorias socialistas e outras experiências socialistas do ponto de vista do objetivo delas enquanto socialistas e seu legado para a humanidade e apresenta alternativas interessantes para se chegar à uma sociedade anti-capitalista.

O professor de Sociologia da Universidade de Wisconsin dedicou-se ao estudo da definição de classes sociais e à teorização de alternativas ao capitalismo, denominadas de “utopias reais”. Morto em 23 de janeiro de 2019, Erik Olin Wright deixa como legado um pensamento rigoroso, profundo e criativo sobre o marxismo do novo século. No texto que segue, o estudioso aponta estratégias anticapitalistas para a superação da faceta negativa do Capital.


Para muitas pessoas, a ideia de anticapitalismo parece ridícula. Afinal, as empresas capitalistas nos trouxeram fantásticas inovações tecnológicas nos últimos anos: smartphones e streaming de filmes; carros sem motorista e mídias sociais; Telas Jumbotron em jogos de futebol e videogames conectando milhares de jogadores ao redor do mundo; todos os produtos de consumo concebíveis disponíveis na Internet para entrega rápida em domicílio; surpreendentes aumentos na produtividade do trabalho através de novas tecnologias de automação e mais.
E, embora seja verdade que a renda é distribuída de forma desigual nas economias capitalistas, também é verdade que a variedade de bens de consumo disponíveis e acessíveis para a pessoa comum, e mesmo para os pobres, aumentou dramaticamente em quase toda parte. Basta comparar os Estados Unidos no meio século entre 1965 e 2015: a porcentagem de americanos com condicionadores de ar, carros, máquinas de lavar roupa, lava-louças, televisões e encanamentos internos aumentou dramaticamente. A expectativa de vida é maior e a mortalidade infantil menor.
No século XXI, essa melhoria nos padrões básicos de vida também ocorreu em regiões mais pobres do mundo: os padrões materiais de milhões de pessoas que vivem na China desde que adotaram o livre mercado melhoraram dramaticamente.
Além disso, veja o que aconteceu quando a Rússia e a China tentaram uma alternativa ao capitalismo. Além da opressão política e da brutalidade desses regimes, eles foram um fracasso econômico. Então, se você se preocupa em melhorar a vida das pessoas, como você pode ser anticapitalista? Essa é uma história, a história padrão.
Aqui está outra história: a marca do capitalismo é a pobreza no meio da abundância. Esta não é a única coisa errada com o capitalismo, mas é a sua falha mais grave.
A pobreza generalizada — especialmente entre as crianças, que claramente não são responsáveis ​​por sua situação — é moralmente repreensível em sociedades ricas, onde poderia ser facilmente eliminada.
Sim, há crescimento econômico, inovação tecnológica, aumento de produtividade e uma difusão descendente de bens de consumo, mas junto com o crescimento econômico capitalista vem a indigência de muitos cujos meios de subsistência foram destruídos pelo avanço do capitalismo, precariedade para os que estão na base, mercado de trabalho e trabalho alienante e tedioso para a maioria.
O capitalismo gerou aumentos maciços de produtividade e riqueza extravagante para alguns, mas muitas pessoas ainda lutam para sobreviver. O capitalismo é uma máquina que aumenta a desigualdade, bem como uma máquina de crescimento. Sem mencionar que está se tornando mais claro que o capitalismo, impulsionado pela busca implacável de lucros, está destruindo o meio ambiente.
Ambos os relatos estão ancorados nas realidades do capitalismo. Não é uma ilusão que o capitalismo tenha transformado as condições materiais da vida no mundo e aumentado enormemente a produtividade humana. Muitas pessoas se beneficiaram disso. Mas, igualmente, não é uma ilusão que o capitalismo gere grandes danos e perpetue formas desnecessárias de sofrimento humano.
A questão central não é se as condições materiais melhoraram em média a longo prazo nas economias capitalistas, mas se, olhando para frente a partir deste ponto da história, as coisas seriam melhores para a maioria das pessoas em um tipo alternativo de economia. É verdade que as economias centralizadas, autoritárias e estatais da Rússia e da China do século XX foram, em muitos aspectos, fracassos econômicos, mas essas não são as únicas possibilidades.
Onde está a verdadeira discordância — uma discordância que é fundamental — é sobre se é possível ter a produtividade, inovação e dinamismo que vemos no capitalismo sem os danos.
Margaret Thatcher notoriamente anunciou no início dos anos 80, “Não há alternativa”, mas duas décadas depois o Fórum Social Mundial declarou “Outro mundo é possível”.
Eu argumento que outro mundo — um que melhoraria as condições para o florescimento humano para a maioria das pessoas — é de fato possível. De fato, elementos deste novo mundo já estão sendo criados hoje, e formas concretas de passar daqui para lá existem.
O anticapitalismo é possível, não simplesmente como uma postura moral em relação aos danos e injustiças do capitalismo global, mas como uma postura prática no sentido de construir uma alternativa para um maior florescimento humano.

Os quatro tipos de anticapitalismo

O capitalismo gera anticapitalistas. Às vezes, a resistência ao capitalismo é cristalizada em ideologias coerentes que oferecem tanto diagnósticos sistemáticos da fonte de danos quanto prescrições claras sobre como eliminá-los. Em outras circunstâncias, o anticapitalismo está submerso em motivações que, na superfície, têm pouco a ver com o capitalismo, como as crenças religiosas que levam as pessoas a rejeitar a modernidade e buscar refúgio em comunidades isoladas. Mas sempre, onde quer que o capitalismo exista, há descontentamento e resistência de uma forma ou de outra.
Historicamente, o anticapitalismo foi animado por quatro diferentes lógicas de resistência: esmagar o capitalismo, dominar o capitalismo, escapar do capitalismo e erodir o capitalismo.
Essas lógicas muitas vezes coexistem e se misturam, mas cada uma delas constitui uma maneira distinta de responder aos danos do capitalismo. Essas quatro formas de anticapitalismo podem ser consideradas como variando ao longo de duas dimensões.
Um diz respeito ao objetivo das estratégias anticapitalistas — transcendendo as estruturas do capitalismo ou simplesmente neutralizando os piores malefícios do capitalismo — enquanto a outra dimensão diz respeito ao alvo primário das estratégias — se o alvo é o Estado e outras instituições no nível macro do capitalismo. sistema, ou as atividades econômicas de indivíduos, organizações e comunidades no nível micro.
Tomando essas duas dimensões juntas, nos dá a tipologia abaixo.

1. Esmagando o capitalismo

Dado o modo como o capitalismo devasta as vidas de tantas pessoas e, dado o poder de suas classes dominantes para proteger seus interesses e defender o status quo, é fácil entender a atratividade da ideia de esmagar o capitalismo.
O argumento é algo assim: o sistema está podre. Todos os esforços para tornar a vida tolerável dentro dela acabarão por falhar. De vez em quando pequenas reformas que melhoram as vidas das pessoas podem ser possíveis quando as forças populares são fortes, mas tais melhorias sempre serão frágeis, vulneráveis ​​a ataques e reversíveis.
A ideia de que o capitalismo pode ser uma ordem social benigna, na qual pessoas comuns podem viver vidas significativas e florescentes, é, em última análise, uma ilusão, porque, em sua essência, o capitalismo é irreformável. A única esperança é destruí-lo, varrer os escombros e depois construir uma alternativa. À medida que as palavras finais do trabalho “Solidariedade Para Sempre” proclamam: “Podemos trazer à luz um novo mundo das cinzas do passado”.
Mas como fazer isso? Como é possível para as forças anticapitalistas acumular poder suficiente para destruir o capitalismo e substituí-lo por uma alternativa melhor? Esta é realmente uma tarefa assustadora, pois o poder das classes dominantes que faz da reforma uma ilusão também bloqueia o objetivo revolucionário de uma ruptura no sistema. A teoria revolucionária anticapitalista, informada pelos escritos de Marx e ampliada por Lênin, Gramsci e outros, ofereceu um argumento atraente sobre como isso poderia acontecer.
Embora seja verdade que grande parte do tempo que o capitalismo parece inatacável, é também um sistema profundamente contraditório, propenso a perturbações e crises. Às vezes, essas crises atingem uma intensidade que torna o sistema como um todo frágil, vulnerável ao desafio.
Nas versões mais fortes da teoria, existem até mesmo tendências subjacentes nas “leis de movimento” do capitalismo para que a intensidade de tais crises enfraquecedoras do sistema aumentem com o tempo, de modo que no capitalismo de longo prazo se torne insustentável; destrói suas próprias condições de existência.
Mas mesmo que não haja uma tendência sistemática para que as crises se tornem cada vez piores, o que se pode prever é que periodicamente haverá intensas crises econômicas capitalistas nas quais o sistema se torna vulnerável e as rupturas se tornam possíveis.
Isso fornece o contexto no qual um partido revolucionário pode liderar uma mobilização em massa para tomar o poder do Estado, seja através de eleições ou através de uma derrubada violenta do regime existente. Uma vez no controle do Estado, a primeira tarefa é remodelar o próprio Estado para torná-lo uma arma adequada de transformação socialista, e então usar esse poder para reprimir a oposição das classes dominantes e seus aliados, desmantelar as estruturas centrais do capitalismo, e construir as instituições necessárias para um sistema econômico alternativo.
No século XX, várias versões dessa linha geral de raciocínio animaram a imaginação dos revolucionários em todo o mundo. O marxismo revolucionário infundiu lutas com esperança e otimismo, pois não apenas forneceu uma poderosa acusação do mundo como existia, mas também forneceu um cenário plausível para como uma alternativa emancipatória poderia ser realizada.
Isso deu coragem às pessoas, sustentando a crença de que elas estavam do lado da história e que o enorme compromisso e sacrifícios que eles foram chamados a fazer em suas lutas contra o capitalismo tinham perspectivas reais de sucesso. E, às vezes, raramente, essas lutas culminaram na tomada revolucionária do poder do Estado.
Os resultados de tais revoluções, entretanto, nunca foram a criação de uma alternativa democrática, igualitária e emancipatória ao capitalismo. Embora as revoluções em nome do socialismo e do comunismo tenham demonstrado que era possível “construir um novo mundo sobre as cinzas do velho” e, de certas maneiras específicas, melhoraram as condições materiais de vida da maioria das pessoas durante um período de tempo, A evidência das tentativas heroicas de ruptura no século XX é que elas não produzem o tipo de novo mundo imaginado na ideologia revolucionária.
Uma coisa é incendiar instituições antigas; outra coisa é construir novas instituições emancipatórias das cinzas.
Por que as revoluções do século XX nunca resultaram em emancipação humana robusta e sustentável é, naturalmente, um assunto muito debatido.
Algumas pessoas argumentam que o fracasso dos movimentos revolucionários foi devido às circunstâncias historicamente específicas e desfavoráveis ​​das tentativas de rupturas em todo o sistema — revoluções ocorreram em sociedades economicamente atrasadas, cercadas por inimigos poderosos. Alguns argumentam que os líderes revolucionários cometeram erros estratégicos, enquanto outros indicaram os motivos da liderança: os líderes que triunfaram no curso das revoluções foram motivados por desejos de status e poder, e não pelo poder e bem-estar das massas.
Outros ainda argumentam que o fracasso é intrínseco a qualquer tentativa de ruptura radical em um sistema social, porque há muitas partes móveis, muita complexidade e muitas consequências não intencionais. Como resultado, as tentativas de ruptura do sistema tenderão inevitavelmente a se desdobrar em tal caos que as elites revolucionárias, independentemente de seus motivos, serão compelidas a recorrer à violência e repressão generalizadas para sustentar a ordem social. Essa violência, por sua vez, destrói a possibilidade de um processo participativo genuinamente democrático de construção de uma nova sociedade.
Independentemente de qual (se houver) dessas explicações estão corretas, as evidências das tragédias revolucionárias do século XX mostram que esmagar o capitalismo por si só não funciona como uma estratégia para a emancipação social.
No entanto, a ideia de uma ruptura revolucionária com o capitalismo não desapareceu completamente. Mesmo que não constitua mais uma estratégia coerente de qualquer força política significativa, fala da frustração e da raiva de viver num mundo de tais desigualdades acentuadas e potenciais não realizados para o florescimento humano, e num sistema político que parece cada vez mais antidemocrático e indiferente.
Para realmente transformar o capitalismo, visões que ressoam com raiva não são suficientes; em vez disso, é necessária uma lógica estratégica que tenha alguma chance de realmente atingir seus objetivos.

2. Domar o capitalismo

A principal alternativa à ideia de esmagar o capitalismo no século XX foi domar o capitalismo. Essa é a ideia central por trás das correntes anticapitalistas dentro da esquerda dos partidos social-democratas.
Aqui está o argumento básico. O capitalismo, quando deixado por conta própria, cria grandes danos. Ela gera níveis de desigualdade que são destrutivos para a coesão social; destrói os empregos tradicionais e deixa as pessoas se defenderem sozinhos; cria incerteza e risco para indivíduos e comunidades inteiras; prejudica o meio ambiente. Estas são todas as consequências da dinâmica inerente de uma economia capitalista.
No entanto, é possível construir instituições contrárias capaz de neutralizar significativamente esses danos. O capitalismo não precisa ser deixado por conta própria; pode ser domado por políticas estatais bem elaboradas.
Certamente, isso pode envolver lutas acentuadas, pois envolve a redução da autonomia e do poder da classe capitalista, e não há garantias de sucesso em tais lutas. A classe capitalista e seus aliados políticos alegarão que os regulamentos e a redistribuição concebidos para neutralizar esses alegados danos do capitalismo destruirão seu dinamismo, sua incapacidade competitiva e minam os incentivos. Tais argumentos, no entanto, são simplesmente racionalizações egoístas para privilégio e poder.
O capitalismo pode estar sujeito a regulação e redistribuição significativas para neutralizar seus danos e ainda proporcionar lucros adequados para que ele funcione. Para isso, é preciso mobilização popular e vontade política; nunca se pode confiar na benevolência esclarecida das elites. Mas, nas circunstâncias certas, é possível vencer essas batalhas e impor as restrições necessárias para uma forma mais benigna de capitalismo.
A ideia de domesticar o capitalismo não elimina a tendência subjacente do capitalismo de gerar danos; simplesmente neutraliza seus efeitos. É como um remédio que lida efetivamente com os sintomas, e não com as causas subjacentes de um problema de saúde.
Às vezes isso é bom o suficiente. Os pais de recém-nascidos são frequentemente privados de sono e propensos a dores de cabeça. Uma solução é tomar uma aspirina e lidar com ela; outra é livrar-se do bebê. Às vezes, neutralizar o sintoma é melhor do que tentar se livrar da causa subjacente.
No que às vezes é chamado de “Idade de Ouro do Capitalismo” — aproximadamente as três décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial — as políticas social-democratas, especialmente naqueles lugares onde foram mais bem implementadas, fizeram um bom trabalho em se mover na direção de uma sistema econômico mais humano.
Três grupos de políticas estatais, em particular, neutralizaram significativamente os danos do capitalismo: riscos sérios — especialmente em torno da saúde, emprego e renda — foram reduzidos por meio de um sistema bastante abrangente de seguro social obrigatório e custeado publicamente. O estado forneceu um conjunto expansivo de bens públicos (financiado por um robusto sistema tributário) que incluía educação básica e superior, formação de habilidades vocacionais, transporte público, atividades culturais, instalações recreativas, pesquisa e desenvolvimento e estabilidade macroeconômica.
E, finalmente, o estado criou um regime regulador para conter as externalidades negativas mais graves do comportamento de investidores e empresas nos mercados capitalistas — poluição, riscos de produtos e locais de trabalho, comportamento predatório do mercado e assim por diante.
Essas políticas não significavam que a economia deixasse de ser capitalista: os capitalistas ainda eram basicamente livres para alocar capital com base em oportunidades lucrativas no mercado e, além dos impostos, apropriavam-se dos lucros gerados por esses investimentos para usar como eles desejaram.
O que mudou foi que o Estado assumiu a responsabilidade de corrigir os três principais fracassos dos mercados capitalistas: vulnerabilidade individual a riscos, subprovisionamento de bens públicos e externalidades negativas do lucro privado — maximizando a atividade econômica. O resultado foi uma forma de capitalismo razoavelmente funcional, com desigualdades silenciadas e conflitos silenciados. Os capitalistas podem não ter preferido isso, mas funcionou bem o suficiente. O capitalismo foi, pelo menos parcialmente, domado.
Essa foi a Idade de Ouro — uma memória fraca das duras primeiras décadas do século XXI. Em todos os lugares hoje, mesmo nas fortalezas da democracia social do norte da Europa, houve pedidos para reverter os “direitos” ligados ao seguro social, reduzir impostos e bens públicos, desregulamentar a produção e os mercados capitalistas e privatizar os serviços do Estado. No conjunto, essas transformações passam ao nome de “neoliberalismo”.
Uma variedade de forças contribuiu para a menor disposição e capacidade aparente do Estado para neutralizar os danos do capitalismo.
A globalização tornou muito mais fácil para as empresas capitalistas moverem investimentos para lugares no mundo com menos regulamentação e mão de obra mais barata, enquanto a ameaça de fuga de capitais, juntamente com uma variedade de mudanças tecnológicas, fragmentou e enfraqueceu o movimento trabalhista, tornando-o menos capaz de resistência e mobilização política. Combinada com a globalização, a crescente financeirização do capital levou a aumentos maciços na riqueza e na desigualdade de renda, o que, por sua vez, aumentou a influência política dos oponentes do Estado social-democrata.
Em vez de ser domado, o capitalismo foi desencadeado.
Talvez as três décadas ou mais da Idade de Ouro fossem apenas uma anomalia histórica, um breve período em que condições estruturais favoráveis ​​e poder popular robusto abriram a possibilidade para o modelo relativamente igualitário.
Antes disso, o capitalismo era um sistema voraz e, sob o neoliberalismo, tornou-se voraz uma vez mais, retornando ao estado normal de coisas para os sistemas capitalistas. Talvez no longo prazo o capitalismo não seja possível. Defensores da ideia de rupturas revolucionárias com o capitalismo sempre afirmaram que domar o capitalismo era uma ilusão, um desvio da tarefa de construir um movimento político para derrubar o capitalismo.
Mas talvez as coisas não sejam tão terríveis. A alegação de que a globalização impõe restrições poderosas à capacidade dos estados de aumentar impostos, regular o capitalismo e redistribuir renda é uma afirmação politicamente eficaz porque as pessoas acreditam nela, não porque as restrições sejam realmente tão restritas. Na política, os limites da possibilidade são sempre em parte criados por crenças nos limites da possibilidade.
O neoliberalismo é uma ideologia, apoiada por forças políticas poderosas, em vez de uma explicação cientificamente precisa dos limites reais que enfrentamos para tornar o mundo um lugar melhor. Embora possa ser o caso de que as políticas específicas que constituíam o menu da social-democracia na Idade do Ouro tenham se tornado menos eficazes e precisassem ser repensadas, domar o capitalismo continua sendo uma expressão viável do anticapitalismo.

3. Escapar do capitalismo

Uma das respostas mais antigas ao ataque do capitalismo foi escapar.
O capitalismo em fuga pode não ter sido cristalizado em ideologias anticapitalistas sistemáticas, mas mesmo assim tem uma lógica coerente: o capitalismo é um sistema muito poderoso para destruir. Verdadeiramente domar o capitalismo exigiria um nível de ação coletiva sustentada que não seja realista, e de qualquer maneira, o sistema como um todo é muito grande e complexo para controlar efetivamente. Os poderosos são fortes demais para serem desalojados, e sempre irão cooptar a oposição e defender seus privilégios. Você não pode lutar contra a prefeitura. Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas.
O melhor que podemos fazer é tentar nos isolar dos efeitos nocivos do capitalismo e, talvez, escapar completamente de seus estragos em algum ambiente protegido. Podemos não ser capazes de mudar o mundo em geral, mas podemos nos remover de sua rede de dominação e criar nossa própria micro-alternativa para viver e florescer.
Esse impulso de escapar se reflete em muitas respostas familiares aos danos do capitalismo.
O movimento de agricultores na fronteira ocidental nos Estados Unidos do século XIX era, para muitos, uma aspiração por uma agricultura de subsistência estável e auto-suficiente, em vez de produção para o mercado. A fuga do capitalismo está implícita no lema hippie dos anos 1960, “ligar, sintonizar, desistir”. Os esforços de certas comunidades religiosas, como os Amish, para criar fortes barreiras entre eles e o resto da sociedade envolveram a remoção de si mesmos. tanto quanto possível das pressões do mercado.
A caracterização da família como um “refúgio em um mundo sem coração” expressa o ideal da família como um espaço social não-competitivo de reciprocidade e cuidado, no qual se pode encontrar refúgio no mundo sem coração e competitivo do capitalismo. E, de maneiras limitadas pelo tempo, o capitalismo fugitivo é mesmo incorporado em caminhadas de longa distância no deserto.
A fuga do capitalismo tipicamente envolve evitar o engajamento político e, certamente, os esforços organizados coletivamente para mudar o mundo. Especialmente no mundo de hoje, a fuga é principalmente uma estratégia de estilo de vida individualista. E às vezes é uma estratégia individualista dependente da riqueza capitalista, como no estereótipo do banqueiro de Wall Street que decide “desistir da corrida dos ratos” e se mudar para Vermont para abraçar uma vida de simplicidade voluntária enquanto vive de um fundo fiduciário. acumulados de investimentos capitalistas.
Por causa da ausência de política, é fácil descartar a estratégia do capitalismo em fuga, especialmente quando reflete os privilégios alcançados dentro do próprio capitalismo. É difícil tratar o caminhante do deserto que voa para uma região remota com equipamento de caminhada caro, a fim de “fugir de tudo”, como uma expressão significativa de oposição ao capitalismo. Ainda assim, há exemplos de capitalismo que escapam ao problema mais amplo do anticapitalismo.
As comunidades intencionais podem ser motivadas pelo desejo de escapar das pressões do capitalismo, mas às vezes elas também podem servir como modelos para formas de vida mais coletivas, igualitárias e democráticas. Certamente, as cooperativas, que podem ser motivadas principalmente pelo desejo de escapar dos locais de trabalho autoritários e da exploração de empresas capitalistas, também podem se tornar elementos de um desafio mais amplo ao capitalismo.
O movimento Do It Yourself e a “economia compartilhada” podem ser motivados por rendimentos individuais estagnados durante um período de austeridade econômica, mas também podem apontar maneiras de organizar a atividade econômica que são menos dependentes da troca de mercado. E, mais genericamente, o estilo de vida da simplicidade voluntária pode contribuir para uma rejeição mais ampla do consumismo e para a preocupação com o crescimento econômico no capitalismo.

4. Erodir o capitalismo

A quarta forma de anticapitalismo é a menos familiar.
Baseia-se na seguinte ideia: todos os sistemas socioeconômicos são misturas complexas de muitos tipos diferentes de estruturas, relações e atividades econômicas. Nenhuma economia jamais foi — ou poderia ser — puramente capitalista. O capitalismo como forma de organizar a atividade econômica tem três componentes críticos: a propriedade privada do capital; produção para o mercado com o objetivo de obter lucros; e emprego de trabalhadores que não possuem os meios de produção.
Os sistemas econômicos existentes combinam o capitalismo com toda uma série de outras formas de organizar a produção e a distribuição de bens e serviços: diretamente pelos estados; dentro das relações íntimas das famílias para atender às necessidades de seus membros; através de redes e organizações baseadas na comunidade; por cooperativas de propriedade e governadas democraticamente por seus membros; embora organizações orientadas para o mercado sem fins lucrativos; através de redes 
peer-to-peer envolvidas em processos de produção colaborativa; e muitas outras possibilidades.
Algumas dessas formas de organizar atividades econômicas podem ser pensadas como híbridos, combinando elementos capitalistas e não-capitalistas; alguns são inteiramente não capitalistas; e alguns são anticapitalistas. Chamamos esse sistema econômico complexo de “capitalista” quando os impulsos capitalistas são dominantes na determinação das condições econômicas da vida e do acesso à subsistência para a maioria das pessoas. Esse domínio é imensamente destrutivo.
Uma maneira de desafiar o capitalismo é construir relações econômicas mais participativas, democráticas e igualitárias nos espaços e rachaduras dentro desse complexo sistema, sempre que possível, e lutar para expandir e defender esses espaços.
A ideia de erodir o capitalismo imagina que essas alternativas têm o potencial, a longo prazo, de se expandir até o ponto em que o capitalismo é deslocado desse papel dominante.
Uma analogia com um ecossistema na natureza pode ajudar a esclarecer essa ideia. Pense em um lago. Um lago consiste em água em uma paisagem, com tipos particulares de solo, terreno, fontes de água e clima. Uma variedade de peixes e outras criaturas vivem em sua água, e vários tipos de plantas crescem dentro e ao redor dela.
Coletivamente, todos esses elementos constituem o ecossistema natural do lago. (Este é um “sistema” em que tudo afeta tudo o que existe dentro dele, mas não é como o sistema de um único organismo no qual todas as partes estão funcionalmente conectadas em um todo coerente e fortemente integrado.)
Em tal ecossistema, é possível introduzir espécies exóticas de peixes não “naturalmente” encontradas no lago. Algumas espécies exóticas serão imediatamente engolidas. Outros podem sobreviver em algum pequeno nicho no lago, mas não mudam muito sobre a vida diária no ecossistema. Mas ocasionalmente uma espécie alienígena pode prosperar e eventualmente deslocar a espécie dominante. A visão estratégica de erodir o capitalismo imagina a introdução das variedades mais vigorosas de espécies emancipatórias da atividade econômica não capitalista no ecossistema do capitalismo, alimentando seu desenvolvimento protegendo seus nichos e descobrindo maneiras de expandir seus habitats. A última esperança é que, eventualmente, essas espécies exóticas possam sair de seus nichos estreitos e transformar o caráter do ecossistema como um todo.
Essa maneira de pensar sobre o processo de transcender o capitalismo é semelhante à história estilizada e popular contada sobre a transição das sociedades feudais pré-capitalistas na Europa para o capitalismo. Dentro das economias feudais no final do período medieval, surgiram relações e práticas protocapitalistas, especialmente nas cidades. Inicialmente, isso envolvia atividades comerciais, produção artesanal sob a regulamentação de corporações e bancos.
Essas formas de atividade econômica preenchiam nichos e eram frequentemente bastante úteis para as elites feudais. À medida que o escopo dessas atividades de mercado se expandiu, eles gradualmente se tornaram mais capitalistas em caráter e, em alguns lugares, mais corrosivos da dominação feudal estabelecida da economia como um todo. Através de um longo processo sinuoso ao longo de vários séculos, as estruturas feudais deixaram de dominar a vida econômica de alguns cantos da Europa; o feudalismo havia erodido.
Esse processo pode ter sido pontuado por convulsões políticas e até mesmo revoluções, mas, em vez de constituir uma ruptura nas estruturas econômicas, esses eventos políticos serviram mais para ratificar e racionalizar mudanças que já haviam ocorrido dentro da estrutura socioeconômica.
A visão estratégica de erodir o capitalismo vê o processo de deslocar o capitalismo de seu papel dominante na economia de maneira similar: atividades econômicas alternativas e não-capitalistas emergem nos nichos onde isso é possível dentro de uma economia dominada pelo capitalismo; essas atividades crescem com o tempo, tanto espontaneamente quanto, crucialmente, como resultado de uma estratégia deliberada; as lutas envolvendo o estado acontecem, às vezes para proteger esses espaços, outras vezes para facilitar novas possibilidades; e, eventualmente, essas relações e atividades não-capitalistas tornam-se suficientemente proeminentes nas vidas de indivíduos e comunidades de modo que não se pode dizer que o capitalismo domina o sistema como um todo.
Essa visão estratégica está implícita em algumas correntes do anarquismo contemporâneo. Se o socialismo revolucionário propõe que o poder estatal seja aproveitado para que o capitalismo seja esmagado, e a socialdemocracia argumenta que o Estado capitalista deveria ser usado para domesticar o capitalismo, os anarquistas geralmente argumentam que o Estado deveria ser evitado — talvez até mesmo ignorado. fim só pode servir como uma máquina de dominação, não de libertação.
A única esperança de uma alternativa emancipatória ao capitalismo — uma alternativa que incorpora ideais de igualdade, democracia e solidariedade — é construí-lo no terreno e trabalhar para expandir seu escopo.
Como uma visão estratégica, a erosão do capitalismo é ao mesmo tempo atraente e improvável.
É atraente porque sugere que, mesmo quando o estado parece bastante incompatível com os avanços na justiça social e na mudança social emancipatória, ainda há muito a ser feito. Podemos continuar com o negócio de construir um novo mundo, não das cinzas do velho, mas dentro dos interstícios do velho.
É absurdo, porque parece totalmente implausível que o acúmulo de espaços econômicos emancipatórios dentro de uma economia dominada pelo capitalismo possa realmente deslocar o capitalismo, dado o imenso poder e riqueza das grandes corporações capitalistas e a dependência da sobrevivência da maioria das pessoas no bem-estar no funcionamento do mercado capitalista. Certamente, se formas emancipatórias não capitalistas de atividades e relações econômicas crescessem a ponto de ameaçar o domínio do capitalismo, elas seriam simplesmente esmagadas.
Corrigir o capitalismo não é uma fantasia. Mas só é plausível se for combinado com a ideia social-democrata de domesticar o capitalismo.
Precisamos de uma maneira de vincular a visão estratégica de anarquismo de baixo para cima, centrada na sociedade, com a lógica estratégica de democracia social centrada no Estado e de cima para baixo. Precisamos domesticar o capitalismo de forma a torná-lo mais erodível e corroer o capitalismo de maneiras que o tornem mais maleável. Um conceito que nos ajudará a ligar essas duas correntes do pensamento anticapitalista é o de 
utopias reais.

Utopias Reais

A verdadeira utopia é uma expressão autocontraditória. A palavra “utopia” foi cunhada por Thomas More em 1516, combinando dois prefixos gregos — eu, que significa bom, e ou, que significa não — em “u” e colocando isso antes da palavra grega para lugar, topos. U-topia é assim o bom lugar que existe em nenhum lugar. É uma fantasia de perfeição.
Como então pode ser “real”? Pode ser realista buscar melhorias no mundo, mas não a perfeição. De fato, a busca pela perfeição pode minar a tarefa prática de tornar o mundo um lugar melhor. Como diz o ditado, “o melhor é o inimigo do bem”.
Existe, portanto, uma tensão inerente entre o real e o utópico. É precisamente essa tensão que a ideia de uma “verdadeira utopia” pretende captar. O ponto é sustentar nossas mais profundas aspirações por um mundo justo e humano que não existe enquanto também nos engajamos na tarefa prática de construir alternativas do mundo real que possam ser construídas no mundo, como também prefigura o mundo como ele poderia ser. e que ajudam a nos mover nessa direção.
As utopias reais transformam, assim, o não-lugar da utopia no agora-aqui da criação de alternativas emancipatórias do mundo tal como ele poderia estar no mundo tal como ele é.
Utopias reais podem ser encontradas sempre que os ideais emancipatórios são incorporados em instituições existentes e propostas para novos projetos institucionais. Ambos são elementos constitutivos de um destino e uma estratégia.
Aqui estão alguns exemplos. As cooperativas de trabalhadores são uma verdadeira utopia que surgiu ao lado do desenvolvimento do capitalismo. Três importantes ideais emancipatórios são igualdade, democracia e solidariedade. Tudo isso está obstruído nas firmas capitalistas, onde o poder está concentrado nas mãos dos proprietários e seus substitutos, os recursos internos e as oportunidades são distribuídos de maneira grosseiramente desigual, e a competição continuamente mina a solidariedade.
Em uma cooperativa de propriedade dos trabalhadores, todos os ativos das empresas são de propriedade conjunta dos próprios funcionários, que também governam a empresa de maneira democrática, com uma pessoa e um voto. Em uma pequena cooperativa, essa governança democrática pode ser organizada na forma de assembleias gerais de todos os membros. Em cooperativas maiores, os trabalhadores elegem conselhos de administração para supervisionar a empresa. As cooperativas de trabalhadores também podem incorporar características mais capitalistas: podem, por exemplo, contratar trabalhadores temporários ou ser inóspitos para membros potenciais de determinados grupos étnicos ou raciais. As cooperativas, portanto, freqüentemente incorporam valores bastante contraditórios.
No entanto, eles têm o potencial de contribuir para erodir o domínio do capitalismo quando expandem o espaço econômico dentro do qual os ideais emancipatórios anticapitalistas podem operar.
Grupos de cooperativas de trabalhadores poderiam formar redes; com formas apropriadas de apoio público, essas redes poderiam ampliar-se e aprofundar-se para constituir um setor de mercado cooperativo; esse setor poderia — sob possíveis circunstâncias — expandir-se para rivalizar com o domínio do capitalismo.
Bibliotecas públicas são outro tipo de verdadeira utopia. Isso pode parecer à primeira vista um exemplo estranho. As bibliotecas são, afinal de contas, uma instituição duradoura encontrada em todas as sociedades capitalistas. Nos Estados Unidos, o vasto sistema de bibliotecas públicas foi em grande medida fundado por Andrew Carnegie, um dos implacáveis ​​barões ladrões da Era Dourada. Ele certamente não era anticapitalista e, no máximo, viu seu apoio filantrópico às bibliotecas como uma forma de fortalecer o capitalismo como um sistema.
No entanto, as bibliotecas incorporam princípios de acesso e distribuição que são profundamente anticapitalistas. Considere a diferença acentuada entre as formas como uma pessoa adquire acesso a um livro em uma livraria e em uma biblioteca.
Numa livraria, você procura o livro que deseja em uma prateleira, verifica o preço, e, se puder pagar e quiser, você vai até o caixa, entrega a quantia necessária e depois sai com o livro. livro. Em uma biblioteca, você vai à prateleira (ou, mais provavelmente, nos dias de hoje, a um terminal de computador) para ver se o livro está disponível, encontrar seu livro, ir ao balcão de check-out, mostrar o cartão da biblioteca e sair com o livro . Se o livro já tiver sido retirado, você será colocado em uma lista de espera.
Em uma livraria o princípio de distribuição é “a cada um segundo a capacidade de pagar”; em uma biblioteca pública, o princípio da distribuição é “para cada um de acordo com a necessidade”. Além disso, na biblioteca, se houver um desequilíbrio entre oferta e demanda, a quantidade de tempo que se tem que esperar pelo livro aumenta; livros com escassa oferta são racionados pelo tempo, não pelo preço. Uma lista de espera é um dispositivo profundamente igualitário: um dia na vida de todos é tratado como moralmente equivalente. Uma biblioteca com bons recursos tratará a duração da lista de espera como um sinal de que mais cópias de um determinado livro precisam ser encomendadas.
As bibliotecas também podem se tornar comodidades públicas polivalentes, não simplesmente repositórios de livros. Boas bibliotecas oferecem espaço público para reuniões, às vezes locais para shows e outras apresentações, e um local de encontro agradável para as pessoas.
Naturalmente, as bibliotecas também podem ser zonas excludentes que são tornadas inóspitas para certos tipos de pessoas. Eles podem ser elitistas em suas prioridades orçamentárias e suas regras. Bibliotecas reais podem, portanto, refletir valores bastante contraditórios. Mas, na medida em que incorporam ideais emancipatórios de igualdade, democracia e comunidade, as bibliotecas são uma verdadeira utopia.
Um exemplo final de uma verdadeira utopia real são as novas formas de produção colaborativa entre pares que surgiram na era digital. Talvez o exemplo mais familiar seja a Wikipedia. Uma década depois de sua fundação, a Wikipedia destruiu um mercado de enciclopédias de trezentos anos; agora é impossível produzir uma enciclopédia de propósito geral comercialmente viável.
A Wikipédia é produzida de maneira completamente não capitalista por algumas centenas de milhares de editores não remunerados ao redor do mundo, contribuindo para o bem comum global e tornando-o disponível gratuitamente para todos. É financiado por uma espécie de economia de doações que fornece os recursos infra-estruturais necessários.
A Wikipédia está cheia de problemas — algumas entradas são maravilhosas, outras terríveis -, mas é um exemplo extraordinário de cooperação e colaboração em grande escala, altamente produtiva e organizada de forma não capitalista.
Existem muitos outros exemplos no mundo digital. Se imaginarmos esse modelo de colaboração estendido ao mundo da produção de bens, não apenas informação, então é possível imaginar a produção colaborativa do p2p invadindo o domínio do capitalismo.
Utopias reais também podem ser encontradas em propostas de mudança social e políticas estatais, não apenas em instituições realmente existentes. Este é o papel crítico das utopias reais nas estratégias políticas de longo prazo para a justiça social e a emancipação humana. Um exemplo é uma renda básica incondicional (UBI).
Uma renda básica simplesmente dá a todos, sem condições, um fluxo de renda suficiente para cobrir as necessidades básicas. Proporciona um padrão de vida modesto, mas culturalmente respeitável e sem frescuras. Ao fazê-lo, também resolve o problema da fome entre os pobres, mas o faz de maneira a colocar em prática um bloco de construção de uma alternativa emancipatória.
A UBI domina diretamente um dos danos do capitalismo — a pobreza no meio da abundância. Mas também expande o potencial para uma erosão de longo prazo do domínio do capitalismo canalizando recursos para formas não-capitalistas de atividade econômica.
Considere os efeitos de uma renda básica nas cooperativas de trabalhadores. Uma das razões pelas quais as cooperativas de trabalhadores são freqüentemente frágeis é que elas precisam gerar renda suficiente não apenas para cobrir os custos materiais de produção, mas também para fornecer uma renda básica para seus membros.
Se uma renda básica fosse garantida independentemente do sucesso de mercado da cooperativa, as cooperativas de trabalhadores se tornariam muito mais robustas. Isso também significaria que eles seriam menos arriscados para empréstimos de bancos.
Assim, ironicamente, uma renda básica incondicional ajudaria a resolver um problema do mercado de crédito para as cooperativas. Isso também garantiria um aumento maciço da participação na produção colaborativa de p2p e muitas outras atividades produtivas que não geram receita de mercado para os participantes.

Domesticar e erodir

Então, como ser anticapitalista no século XXI?
Desista da fantasia de esmagar o capitalismo. O capitalismo não é quebrável, pelo menos se você realmente quiser construir um futuro emancipatório. Você pode pessoalmente escapar do capitalismo saindo da rede e minimizando seu envolvimento com a economia monetária e o mercado, mas isso dificilmente é uma opção atraente para a maioria das pessoas, especialmente aquelas com filhos, e certamente tem pouco potencial para promover um mercado mais amplo. processo de emancipação social.
Se você está preocupado com a vida dos outros, de uma forma ou de outra, você tem que lidar com estruturas e instituições capitalistas. Domesticar e erodir o capitalismo são as únicas opções viáveis. Você precisa participar tanto de movimentos políticos para domesticar o capitalismo através de políticas públicas quanto em projetos socioeconômicos de erosão do capitalismo através da expansão de formas emancipatórias de atividade econômica.
Precisamos renovar uma democracia social progressista enérgica que não apenas neutralize os danos do capitalismo, mas também facilite iniciativas para construir utopias reais com o potencial de corroer o domínio do capitalismo.


Tradução: Ricardo Moura.