quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020


O NEOFASCISMO E A ELEIÇÃO DE UM MEME


O livro “Tudo O Que Você Precisou Desaprender Para Virar Um Idiota” editado pelos autores (Álvaro Borba e Ana Lesnovski) do blog Meteoro Brasil (São Paulo, Editora Planeta, 2019), na verdade foi escrito como réplica ao livro “O Mínimo que Você Precisa Saber para não Ser um Idiota ", do guru do ultraconservadorismo neofascista brasileiro Olavo de Carvalho (Rio, Record, 2013) e suas teses conspiratórias….. O grupo Meteoro Brasil desmascara as principais teses do grupo olavista, desvendando as 24 principais. Não vamos discutir aqui as teses conspiratórias muito bem destrinchadas no livro. Mas vamos resumir as principais ideias que estão nos prólogos, debatidas no livro para combater as fantasias e ficções criadas pela ultra-direita brasileira visando dominar o universo imaginário dos eleitores e da população brasileira e desta forma inverter valores usando as novas tecnologias do mundo das mídias eletrônicas e digitais….tentam transformar a VERDADE em MENTIRA e vice-versa, num processo contínuo de destruição da realidade e de morte à verdade.

Para os autores o idiota era um egoísta no passado e continua sendo. A diferença é que antes ele ficava fora da política. Hoje, ele é a política. Tudo é feito por ele, para ele, em nome dele. Por isso, a prioridade absoluta do idiota é combater qualquer filosofia ou doutrina que pregue valores coletivos. Se há um coletivo, o idiota se sente ameaçado em seu direito sagrado de ser idiota.. Esta foi a primeira lição que foi preciso desaprender para virar um idiota.



PRÁTICAS AUTORITÁRIAS E/OU NEOFASCISTAS DA “NOVA DIREITA” BRASILEIRA
Meteoro cita dois autores para ajudar a identificar as práticas autoritárias e neofascistas dos líderes da “nova direita” brasileira.

Meteoro cita o livro Como as democracias morrem de Steven Levitsky, cientista político da Universidade de Harvard. O autor do livro elabora um modelo bem simples para identificar potenciais tendências autoritárias de um líder. O teste precisa apenas de 4 etapas para entregar o resultado : primeiro observamos se o líder em questão rejeita as regras do jogo democrático (quando p.ex. Ele diz que não aceitará o resultado em caso de derrota nas eleições); em segundo lugar, precisamos ficar atentos a qualquer discurso ou comportamento que encoraje a violência (usando arminha ou estimulando criança a usar arma); em terceiro lugar o político nega a legitimidade da existência de seus adversários políticos (se ele diz, hipoteticamente que os adversários merecem ser metralhados); e por último, devemos reparar se o aspirante ao cargo, em algum momento sugere que usará seu poder para restringir as liberdades civis de seus opositores ou prejudicá-los de alguma forma (alguém que se diz disposto a acabar com todos os “ativismos do Brasil” ). O fenômeno é perigoso, no século XXI não é com tanques de guerra nas ruas e tiros de canhão que se mata uma democracia, mas elegendo alguém disposto a subverter as regras do jogo. Nesse empenho a comunicação é a ferramenta perfeita, pois é no âmbito dos significados que reside a maior disputa por poder na atualidade. A guerra é semântica e mesmo os adeptos das teorias conspiratórias mais alucinadas parecem reconhecê-la quando escolhem nominar seus esforços para exercer poder na arena discursiva como “guerra cultural”.

Meteoro cita outro livro Como funciona o fascismo de Jason Stanley que destaca 10 características fundamentais que se unem para formar o conceito escondido na palavra “fascismo”. O primeiro desses pilares consiste em despertar nas pessoas uma nostalgia que viabilizará as etapas seguintes. Na retórica fascista é a busca pelo “passado mítico”. No caso do Brasil, a nostalgia pelo período da ditadura militar. O segundo pilar do fascismo é a propaganda que se dedica a inverter as coisas : doutrinadores falam em luta contra a doutrinação e corruptos falam em luta contra a corrupção. A terceira característica fascista é o anti-intelectualismo : as universidades são hostilizadas por disseminar muita doutrinação e pouca educação, servindo como propagadoras de todo tipo de imoralidade. O quarto pilar é o esfacelamento da verdade, é a presença massiva de teorias conspiratórias no debate político. A destruição da realidade também é fundamental. Quando o consenso sobre a realidade é destruído e o medo de inimigos imaginários é disseminado por meio de teorias conspiratórias, tudo o que se pode fazer é confiar num líder e acreditar que seus discursos são verdadeiros. O fascismo transforma as palavras do líder no único referencial possível para a compreensão da realidade. Faz sentido, pois fascismo é sobre lealdade, nunca liberdade. Uma quinta característica do fascismo é a divisão da sociedade em “nós” e “eles”. Seus seguidores não hesitam em expressar sua pretensa superioridade. Ex: um deputado diz no Congresso à uma deputada de posição política oposta que ele não a estupra porque ela não merece. Uma sexta característica é a vitimização : o grupo dominante se diz vítimas das minorias. Justiça social e promoção da igualdade é encarada como uma violência cometida contra o grupo dominante. Ex: cotas de negros nas universidades. A sétima característica do fascismo é a criminalização de suas dissidências pelo princípio de “lei e ordem”. Se um presidente vence uma eleição e, ao comemorar sua vitória, diz que o concorrente logo estará na cadeia, ele ergue este pilar, não importa se é bravata. O oitavo pilar do fascismo é a disseminação da tensão sexual que apela para nossos medos mais íntimos. Os opositores do líder são considerados naturalmente imorais, dados a todo tipo de prática sexual para lá de contestável. Ex: mamadeira de piroca e kit gay foram os assuntos mais comentados na corrida presidencial. Não é um bom sinal. No nono passo, o fascismo expande o que conquistou espalhando tensão sexual. Grupo dominante: pureza tradicional e ancestral. Opositores : imoralidade moderna e urbana. O grupo dominante precisa assumir a liderança moral e ensinar aos seus opositores, muito hipoteticamente, que menino veste azul e menina veste rosa. Por último, no décimo passo, o fascismo estabelece a noção de que qualquer um que resista a seu domínio é um preguiçoso. Stanley nos alerta para todos os horrores que se tornam justificáveis quando julgamos que contra nós há apenas monstros imorais e preguiçosos. A oposição só quer a queda do fascismo para continuar na mamata.

É necessário ressaltar o papel central da destruição da realidade nisso tudo : é só porque os seguidores do grande líder perderam qualquer contato com a verdade que eles se rendem a seus piores ódios e temores. E pouco importa se esses ódios e temores são exatamente os mesmos do fascismo da primeira metade do século XX. Os métodos são os mesmos : o ataque deliberado contra a realidade faz parte da técnica. O receptor de rádio mais difundido na Alemanha nazista era o VE301 (30 de janeiro é aniversário da chegada de Hitler ao poder). O Estado obrigou os três fabricantes a produzirem o mesmíssimo aparelho a preço superbarato. O rádio era equipado para receber apenas as transmissões internas do regime. Em 1939 o aparelho estava em 12,5 milhões de residências alemãs que só ouviam os discursos nazistas.. O rádio permitia ao Fuhrer e aos ideais do regime uma presença massiva e simultânea nos lares alemães e o ministro Joseph Goebbels se encarregou pela comunicação nazista. Goebbels percebeu seu papel como agente de controle do fluxo de informação (monopólio da informação), atuando como ampliador dos canais que permitiriam a chegada da mensagem do partido a quem mais pudesse ser influenciado por ela. O investimento governamental do rádio permitiu que a versão do governo (em detrimento das outras versões) para as notícias mais quentes do dia estivesse servida diariamente na mesa de cada família alemã.

Da mesma forma, no século XXI, alguém capaz de mobilizar um aparato de disparo massivo de conteúdo estaria operando segundo os mesmos princípios --- seja por meio de um aplicativo de troca de mensagens, seja instruindo seus apoiadores a consumirem informação apenas de suas fontes selecionadas, retirando a credibilidade de todas as outras. Talvez a verdade tenha morrido porque o fascismo – fascismo como técnica mais do que como regime político – finalmente voltou a encontrar as ferramentas necessárias para cometer o ato. Se conseguiu muito do que queria só agora, foi porque a tecnologia lhe concedeu novas possibilidades.


A ELEIÇÃO DE UM MEME

Meteoro cita o livro de Paulo Sérgio Guerreiro A Eleição de um Meme (Rio, Multifoco, 2019) que considera que uma articulação possível entre tecnologia, comunicação, cultura e política ajuda a explicar o fenômeno atual da “nova direita” e/ou do novo tipo de fascismo atual. Guerreiro parece se referir ao “conglomerado ideológico” do fascismo que sobreviveu até nossos dias, tanto seu ideário quanto sua técnica. O autor tenta nos dar uma medida da gravidade da profusão de notícias falsas : as fake news não terão impactos “puramente eleitorais, mas também consequências científicas.”….É assustador que tamanha promessa de obscurantismo possa se concretizar apenas com a eleição de um personagem que é menos um político do que um meme; coisa que, ao menos como a internet a entende, nasceu como uma curiosidade sem maiores consequências.

Guerreiro se refere à compreensão pouco consensual que a internet tem do termo: “A duplicação e a proliferação são as principais características dos memes da internet; não há memes sem duplicação de um espaço para outro. Portanto, é a partir dessas características que se relacionam os conteúdos de internet e assim foram designados memes.” Na internet, os memes replicam, segundo Guerreiro, “ideias reduzidas a pequenos conteúdos”. Quanto mais síntese e quanto mais caricatura, maior a capacidade de reprodução: “a capacidade de um texto científico tornar-se viral é quase zero, e se acontece, não é um meme, pois ninguém consegue reproduzir com facilidade 40 páginas de um texto científico.”. …. a fim de manter o seu efeito viral, alguns tipos de mensagens parecem circular mais facilmente do que outras e daí as consequências para a formação da cultura ou para uma eleição. É a candidatura que tem mais chances de se replicar no ambiente das redes sociais digitais. Na medida em que as redes acumularam relevância dentro dos aparatos de propaganda, foram essas as candidaturas beneficiadas. Sua mensagem é feita sob medida para os métodos de propagação viral: informação direta, às vezes cômica e polêmica, mas sempre curta e grossa.

"A verdade morreu porque a internet, uma revolução recebida com tanto otimismo, uma tecnologia que deveria disseminar o conhecimento e elevar a humanidade ao próximo patamar, tem sido tudo menos isso. Todo o potencial do maior aparato de comunicação já criado esbarrou nas limitações de seus usuários e dos operadores dos algoritmos que definem como o conteúdo será distribuído. A matemática Cathy O'Neil bem avisou : "algoritmos são formas de automatizar o status quo". Também falhamos em nos dar conta disso. " …

."....poderíamos assumir que aquela incapacidade de reduzir textos científicos a memes tenha fortalecido a presença das teorias conspiratórias na esfera comunicacional..… grosseiras e imprecisas elas tem poder de síntese que a viabilizam como memes e portanto como peça comunicacional capaz de se reproduzir..… era mesmo de se esperar que toda e qualquer redução da realidade ganhasse prioridade na internet......"

Houve um tempo, não muito distante, em que a política tinha a comunicação como instrumento. Uma boa reunião entre o político e o magnata da mídia seria o suficiente para direcionar a cobertura. A lógica se inverteu : as redes sociais transformam todos nós, ainda que em escala moderada, em veículos de comunicação. Assim, é a política que se torna um instrumento nas mãos da comunicação; uma comunicação digital que, como vimos, é feita de síntese, caricatura e polarização. Não há como voltar atrás. Resta-nos apenas desenvolver estratégias para lidar com o novo paradigma. Até lá, a comunicação continuará privilegiando uma política feita à sua imagem e semelhança. Consta no atestado de óbito da verdade, portanto, não apenas a política, mas também a comunicação e a nossa já conhecida incapacidade de usar de maneira responsável as tecnologias que criamos…… Quando a verdade morre, pagamos com a democracia.

Daniel Miranda Soares é mestre pela UFV, economista pela UFMG e professor aposentado.