PARAÍSOS
FISCAIS E A
PERVERSÃO DO CAPITALISMO FINANCEIRO.
INTRODUÇÃO.
Os
dois últimos livros de Ladislau Dowbor (O Capital
Improdutivo e Além do Capitalismo, 2018 – disponíveis
na internet) e o livro de François
Chesnais (A
Finança Mundializada,
2014, Boitempo
Editorial
) retratam
muito bem o papel do Capital Financeiro (ou capitalismo neoliberal ou
mundialização financeira ou mesmo Financeirização da Economia)
que a economia mundial passa a sofrer a partir dos anos 1980. Esse
capital torna-se hegemônico a partir das reformas de Ronald Reagan e
Margaret Thatcher, no período 1979-1981 que desregulamentam o
mercado financeiro, dando liberdade quase total aos empreendedores
deste mercado, que passam a especular e a cometer fraudes
constantemente. François Chesnais chama de “capital
portador de juros” o que chamamos de Neoliberalismo
ou Financeirização da Economia. Eles buscam “fazer dinheiro”
sob
a forma de juros de empréstimos, dividendos e outros pagamentos
recebidos a título de posse de ações. Os investidores
institucionais atuam com fundos de pensão, fundos coletivos de
aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram sociedades
de investimento, bônus do Tesouro e outras formas de títulos da
dívida pública, obrigações das empresas e ações, planos de
previdência privada, etc., formando um trampolim de uma acumulação
financeira de grandes dimensões.
Foi necessário que os Estados mais poderosos decidissem liberar o
movimento dos capitais e desregulamentar e desbloquear seus sistemas
financeiros a partir de 1979-81, dando início ao sistema de finança
mundializada e interconectada internacionalmente.
Os investidores institucionais foram os primeiros beneficiários da
desregulamentação monetária e financeira e ao longo dos anos
80, eles tiram dos bancos o primeiro lugar como pólo da
centralização financeira. O
mercado de câmbio com taxas flexíveis e o colapso do sistema de
Bretton Woods foi o primeiro a entrar na mundialização financeira,
junto com a abertura externa e interna dos sistemas nacionais (o
livre comércio internacional) antes fechados e compartimentados,
conduziram à emergência de um espaço financeiro mundial.
O
PODER DO CAPITAL FINANCEIRO
Segundo
Dowbor (O Capital Improdutivo) uma pesquisa do ETH (Instituto Federal
Suíço de Pesquisa Tecnológica), de 2011, iluminou pela
primeira vez o sistema global nesta escala, com dados concretos ….A
metodologia é muito clara: selecionaram as 43 mil corporações
mais importantes no banco de dados Orbis 2007, composto por 30
milhões de empresas, e passaram a estudar como elas se relacionam: o
peso econômico de cada entidade, a sua rede de conexões, os fluxos
financeiros e em que empresas têm participações que permitem
controle indireto. A inovação é que a pesquisa do ETH realizou
este trabalho para o conjunto das principais corporações do
planeta, e traçou o mapa de controle global. Descobrimos que as
corporações transnacionais formam uma gigantesca estrutura em forma
de gravata borboleta (bow-tie),
e que uma grande parte do controle flui para um núcleo (core)
pequeno e fortemente articulado de instituições financeiras.
O cálculo
consistiu em identificar qual a fração de atores no topo que detém
mais de 80% do controle de toda
a rede…… Os resultados são
fortes: “apenas 737 dos principais atores (top-holders)
acumulam 80% do controle sobre o valor de todas as empresas
transnacionais (ETN). Isto significa que o controle em rede
(network
control)
é distribuído de maneira muito mais desigual do que a riqueza. Em
particular, os atores no topo detêm um controle dez vezes maior do
que o que poderia se esperar baseado na sua riqueza”.
PIB
MUNDIAL = 73 trilhões de dólares ; Produtos financeiros = 710
trilhões de dólares; em
2015.
(veja
gráfico abaixo).
Um
fato adicional relevante neste
ponto é que ¾ do núcleo são intermediários financeiros…...Um
efeito mais amplo é
a tendência de dominação geral dos sistemas especulativos sobre os
sistemas produtivos …….O
gigante corporativo, que abraça
muito mais recursos do que a sua capacidade de gestão, é demasiado
fechado e articulado para ser regulado por mecanismos de
mercado, e poderoso demais para ser regulado por governos eleitos. Os
gigantes empresariais detêm ativos muito mais elevados do que o PIB
da maioria dos países (os
cinco primeiros só não são maiores do que o PIB dos EUA, China,
Japão e Alemanha);
além
disso, eles têm em comum o
fato de constituírem redes de controle de inúmeras atividades,
através de controle acionário.
O
gigante Tencent,
multinacional de base chinesa, 6ª maior depois da Apple, Google,
Microsoft, Amazon
e
Facebook,
dá uma boa ideia de uma corporação moderna. Em simples consulta
na Wikipédia
é possível saber que
esse grupo controla atividades de e-comércio, jogos de vídeo,
software, realidade virtual, compartilhamento de transporte,
atividade bancária, serviços financeiros, fintech,
tecnologia
de consumidor, informática, indústria automobilística, produção
de filmes, entradas de cinema, música, tecnologia espacial, recursos
naturais, smartfones, big data, agricultura, serviços médicos,
cloud
computing, mídia
social, e-books,
serviços de internet, educação, energia renovável, inteligência
artificial, robótica, entrega de alimentos e outros. Qualquer setor,
qualquer país, em atividades cruzadas com inúmeras empresas que vão
desde o Youtube até a empresa francesa de perfumes L’Oréal. É
pouco provável que você tenha ouvido falar da Tencent, e, no
entanto, seguramente em alguma das suas atividades de compra você
alimenta os controladores dessa empresa. Uma parte do seu dinheiro
vai parar nos bolsos dos seus controladores.
PARAÍSOS
FISCAIS
Todos
os grandes grupos financeiros mundiais e os maiores grupos econômicos
em geral estão hoje dotados de filiais (ou matrizes) em paraísos
fiscais....Nos paraísos fiscais, os recursos são reconvertidos em
usos diversos, repassados a empresas com nomes e nacionalidades
diferentes, lavados e formalmente limpos, livres de qualquer pecado.
Não é que tudo se torne secreto, mas com a fragmentação do fluxo
financeiro, que ressurge em outros lugares e com outros nomes, é o
conjunto do sistema que se torna opaco, incluindo-se inúmeras
empresas formalmente pertencentes a nações concretas......(O
FILME “A LAVANDERIA” NA NETFLIX retrata bem esta situação). Mas
na base está um problema estrutural: o sistema financeiro é
planetário, enquanto as leis são nacionais, e não há
governo/governança mundial.....As políticas keynesianas deixam em
grande parte de ser funcionais quando se rompe a unidade territorial
entre o espaço das políticas macroeconômicas de uma nação e o
espaço global do sistema financeiro.
Todas
as grandes corporações têm conexões solidamente implantadas em
paraísos fiscais, podendo movimentar os seus recursos sem qualquer
controle da área pública, de governos eleitos. Mais
ainda, com o descontrole dos fluxos financeiros internacionais, é a
própria capacidade de cobrança de impostos e de canalização
produtiva dos recursos pelos governos eleitos que se vê prejudicada.
É muito característico a Apple ter pago 0,05% em impostos sobre os
seus imensos lucros na Europa, em 2016.
José Antonio Ocampo resume de maneira clara: “A globalização
tornou obsoleto o regime internacional de tributação das empresas.
O esquema atual foi elaborado pelos países desenvolvidos no início
do século XX, quando suas empresas, que dominavam o comércio
mundial – então fundamentalmente de bens – eram sociedades
integradas que comercializavam com empresas radicadas em outros
países ou colônias. Mas hoje, quase a metade do comércio mundial
ocorre entre matrizes e filiais de empresas transnacionais, o setor
de serviços representa três quintos do PIB mundial, e os países em
desenvolvimento produzem dois quintos desse produto, sendo suas
grandes empresas também transnacionais.”
O
que aparece na mídia econômica é a briga entre a União Europeia e
os Estados Unidos, em torno dos impostos devidos pelas empresas, mas
o que realmente importa é que a capacidade de os governos promoverem
o desenvolvimento por meio de investimentos em infraestruturas e em
políticas sociais fica drasticamente reduzida. Se não governamos os
recursos que permitem financiar as políticas, que política estamos
governando? O capitalismo em que a economia é planetária e a
regulação é nacional simplesmente trava a capacidade dos governos
exercerem a sua principal função, que é de equilibrar o
desenvolvimento por meio de políticas econômicas. Políticas
nacionais keynesianas no contexto de fluxos financeiras globais
deixam em grande parte de funcionar. O longo prazo previsto por
Keynes chegou.
A
LÓGICA DO CAPITAL
MUDOU
– DO PRODUTIVO AO IMPRODUTIVO.
A
lógica sistêmica muda radicalmente, pois o interesse maior desses
grupos está na rentabilidade financeira final, definida por aqueles
que estão no topo da
pirâmide. O espaço de decisão empresarial, visto tradicionalmente
no nível de um produtor concreto de um bem ou serviço determinado,
e que, portanto, estaria interessado inclusive em prestar um bom
serviço ao cliente, se desloca. A mudança profunda em termos de
quem controla as decisões leva ao deslocamento da forma de se
extrair a mais valia gerada no quadro dos processos produtivos. Os
acionistas dominantes, ou controladores financeiros de diversos
tipos, veem a empresa produtora que está na base da pirâmide como
uma unidade de extração de dividendos. Aos
acionistas do Bradesco (via Vale e Vale-Par) interessa apenas a
maximização do rendimento financeiro da Samarco, e em geral no
curto prazo. Uma
unidade empresarial produtora de bens ou serviços podia se orientar
por uma visão estrutural e de longo prazo de inserção na
comunidade, de apoio à formação de funcionários, de investimento
no desenvolvimento sustentável do território onde se situa. MAS….
NESTE CASO NÃO É SÓ UMA UNIDADE PRODUTORA DE BENS…..ELA
É SÓ A PONTA DA BASE …. QUEM MANDA É
O CAPITAL FINANCEIRO QUE DOMINA E
ESTÁ NO TOPO DA PIRÂMIDE….
ENTÃO A ORDEM VEM DO TOPO…..NADA DE INVESTIMENTOS PRODUTIVOS
SUSTENTÁVEIS OU DE MELHORIA DA SEGURANÇA DA COMUNIDADE…..
Resultados:
os maiores desastres ecológicos mundiais registrados em Mariana e
Brumadinho e
em outros lugares do mundo….
Centenas de vítimas e perdas humanas…..Mas
o capital financeiro não está nem aí…..aliás eles nem sabem o
que está acontecendo… não entendem nada de produção…. Só
querem que maximizem seus dividendos aplicados na rede. A lógica da
rentabilidade mudou.
Conhecemos
os produtos finais que aparecem nas gôndolas dos supermercados, mas
saber a quem pertencem, quem os controla, qual política adotada em
termos ambientais, sociais ou de simples segurança do consumidor,
está evidentemente fora do nosso alcance. Os grupos centrais acima
constituem holdings financeiras que controlam outras instituições
financeiras dispersas em vários setores e vários países que, por
sua vez, controlam empresas realmente produtoras de alguma coisa que
se consome. Nomes de referência como Nestlé apenas são mantidos
pelo elevado investimento feito durante décadas para associar a
marca a imagens positivas. No
topo decidem gestores financeiros que pouco entendem das esferas
produtivas; e nem poderiam, considerando a diversidade de produtos,
setores e países de atividade.
Enfrentamos uma mudança qualitativa. Não se trata mais de
corporações de um país controlando a política desse mesmo país,
mas de grupos mundiais exercendo seu controle, de maneira articulada,
sobre um conjunto de países simultaneamente, com capacidade de mudar
as leis nacionais em função de interesses transnacionais.
Os
impactos são
sistêmicos. “As propinas contaminam e corrompem governos, e os
paraísos fiscais contaminam e corrompem o sistema financeiro
global”. A realidade é que se criou um sistema que torna inviável
qualquer controle jurídico e penal da criminalidade bancária.
Praticamente todos os grandes grupos estão com dezenas de
condenações por fraudes dos mais diversos tipos, mas em
praticamente nenhum caso houve sequelas judiciais como condenação
pessoal dos responsáveis. O sistema criado envolve uma multa, acordo
judicial (settlement)
que libera a corporação, mediante pagamento, do reconhecimento de
culpa. Basta a empresa fazer, enquanto pratica a ilegalidade, uma
provisão financeira para enfrentar os prováveis custos do acordo
judicial.
Os
responsáveis pelo desastre de Mariana pagaram uma “ninharia”
às vítimas e pagaram muito mais em
dividendos aos seus acionistas.
O
sistema é
planetário, e o fato de estar solidamente imbricado no sistema
financeiro internacional mostra a que ponto não se trata de uma
atividade paralela, uma exceção às regras de comportamento
financeiro, mas de um elemento estruturante fundamental de todo o
processo produtivo moderno
Um
estudo de Mark Peith e Joseph Stiglitz resume perfeitamente
o que enfrentamos: “Cresce o consenso de que os paraísos
fiscais
– jurisdições que solapam as normas globais de transparência
empresarial e financeira – representam um problema global por
facilitarem
tanto a lavagem de dinheiro quanto a evasão e elisão fiscais,
contribuindo assim com o crime e níveis inaceitáveis de
desigualdade global de riqueza.”
A
lógica
da acumulação de capital mudou.
Os recursos, que vêm em última instância do nosso bolso (os custos
financeiros estão nos preços e nos juros que pagamos), não só não
são reinvestidos produtivamente nas economias como sequer pagam
impostos. Não se trata apenas da ilegalidade da evasão fiscal e da
injustiça que gera a desigualdade. Em termos simplesmente
econômicos, de lucro, reinvestimento, geração de empregos, consumo
e mais lucros – o ciclo de reprodução do capital --, o sistema
trava o desenvolvimento. É o capitalismo improdutivo.
HÁ
NECESSIDADE DE UM NOVO PACTO GLOBAL
Segundo
Dowbor, democracias nacionais, eleições, mercados locais e comércio
exterior, estão saindo de cena com grande rapidez. Mudam
as infraestruturas, as bases produtivas do planeta, e com isso
tornam-se profundamente desajustadas as superestruturas, o conjunto
de regras do jogo herdadas da era da economia das nações. O
planeta encolheu, temos todos de buscar objetivos de desenvolvimento
sustentável, as nações têm de se conformar com um papel reduzido,
os povos têm de aprender a conviver em ambiente multicultural. E
muito além do Estado de Bem-Estar, temos de evoluir, na formulação
da UNCTAD, para um Global
New Deal,
um
novo pacto global, pois a desarticulação presente está afundando o
mundo em dramas ambientais, sociais e econômicos.
.No
conjunto, as
formas de regulação e de dominação na sociedade, no nível das
superestruturas, deslocaram-se profundamente relativamente à era do
capitalismo industrial e concorrencial.
O novo mix de organização do poder na sociedade articula o poder
político das corporações, a vigilância capilarizada sobre as
populações por meio do controle da privacidade individual, a
publicidade invasiva como manipulação dos comportamentos e dos
valores da sociedade, e a generalização do rentismo como mecanismo
de extração do excedente social.
HÁ
UMA FRAQUEZA BÁSICA NO SISTEMA FINANCEIRO GLOBAL : o
enriquecimento no topo da pirâmide é claramente improdutivo,
e a narrativa do merecimento está se desfazendo rapidamente. Em
particular, em termos econômicos, o sistema se apropria do excedente
não produzindo ou estimulando a produção, mas pelo contrário
gerando escassez. A
concentração de renda e de patrimônio aprofunda a desigualdade,
e hoje os pobres têm consciência do massacre que sofrem. E são
muitos. As formas de produção são um desastre para o meio
ambiente, e as pessoas no mundo começam a se mobilizar. Tal
como funciona, em termos sociais, ambientais e econômicos, o sistema
está se tornando cada vez mais disfuncional.
O
principal fator de produção, o conhecimento, é um
fator de produção
imaterial,
portanto, pode ser estocado, analisado, transmitido e generalizado em
volumes virtualmente infinitos e praticamente sem custos. O
conhecimento pode ser generalizado para toda a população e todas as
empresas através de aparelhos simples e baratos que cabem no bolso.
…. as corporações travam o acesso com pretexto da legitimidade da
propriedade intelectual. Não há como não ver a imensa
generalização da prosperidade planetária que está no horizonte,
como não há como não ver a batalha das corporações e dos
rentistas para tentar travar o acesso. …. as instituições que
geram barreiras e escassez artificial aparecem cada vez mais como o
que são: entraves à generalização do progresso…. O
conceito de propriedade, em particular a sua legitimidade, precisa
agora ser radicalmente redimensionado.
Não por razões filosóficas ou jurídicas, mas por razões
evidentes de produtividade sistêmica da sociedade. ….Um segundo
grande eixo de destravamento da nossa capacidade de generalizar o
progresso e a prosperidade compartilhada consiste em resgatar o nosso
direito de nos reapropriarmos dos nossos próprios recursos
financeiros….. O
grande capital controla o conhecimento e os recursos financeiros,
cobrando com royalties, patentes e copyrights o acesso ao primeiro, e
com juros absurdos o acesso ao segundo, gerando
escassez para poder cobrar o acesso.
É um sistema de minorias que enriquecem ao dificultar o
desenvolvimento, em vez de promovê-lo.
Sabemos
bem hoje o que deve ser feito, estão aí os Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável,
excelente sistematização das prioridades, como redução
da desigualdade e da pobreza, na visão ampla de uma sociedade
economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente
sustentável.
O acesso generalizado ao conhecimento no sentido amplo, bem como o
acesso aos recursos financeiros, constituem os meios básicos para
que os ODS se materializem. Temos, como dizem, a faca e o queijo, mas
eles
estão em mãos erradas.
Daniel
Miranda Soares é economista, mestre pela UFV e ex-professor
universitário aposentado.
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