quinta-feira, 17 de setembro de 2020

 

NOTAS SOBRE O DOCUMENTÁRIO “O DILEMA DAS 

REDES” EXIBIDO NA NETFLIX.


Primeiro vamos reproduzir uma excelente reportagem de Raquel Carneiro, atualizado em 14 set 2020, da revista VEJA.

‘O Dilema das Redes’: documentário da Netflix explica avanço bolsonarista.

Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software”. A fala do professor de estatística Edward Tufte, da Universidade de Yale, é uma das frases de efeito do documentário.
O alto potencial viciante de aplicativos como Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp é o cerne do filme que destrincha os bastidores de funcionamento destes programas e como eles, ao contrário de sua razão de ser, que seria conectar pessoas, aumentaram a divisão, a polarização e a radicalização. A produção examina desde os perigos das redes para a saúde mental de adolescentes até a propagação de fake news, e a ascensão ao poder de populistas de direita como o brasileiro Jair Bolsonaro.

Dirigido pelo documentarista americano Jeff Orlowski, o filme começa de forma provocativa. Antigos funcionários de empresas como as citadas acima, além da superpoderosa Google e da aparentemente inofensiva Pinterest, são colocados diante das câmeras para responder o que faziam nessas companhias e por que saíram delas. As respostas coincidem: os desligamentos foram motivados por questões éticas pessoais. O espectador do documentário está, então, pronto e atento para ouvir a razão de tanto arrependimento da parte de mentes brilhantes que, para o bem e para o mal, fizeram das redes um ambiente comum indispensável de se viver no século XXI.

Ao longo de sua primeira metade, o documentário destrincha informações que não são uma grande novidade aos que já se interessam minimamente pelo assunto.
Basicamente, as empresas de tecnologia lucram transformando o próprio usuário em produto. Seus hábitos, gostos, desejos, tristezas, crenças – tudo é coletado por sistemas de inteligência artificial hoje amplamente conhecidos como algoritmos. Com estes dados, as redes sociais indicam de forma personalizada a cada pessoa desde opções de entretenimento e contato com outros indivíduos, até produtos e propagandas que induzem ao consumo.
O documentário da Netflix se destaca de outros do tipo ao explicar de forma didática esse intrincado funcionamento, com a ajuda de especialistas em tecnologia e saúde mental, além de uma representação fictícia de uma família afetada pelo sistema.


Em sua segunda metade, o filme esquenta e revela de fato o campo minado onde a humanidade se enfiou sem olhar para o chão — e com a cara na tela do celular. Os
antigos funcionários passam a falar sobre os efeitos negativos que os incomodaram na chamada tecnologia persuasiva, que instiga o usuário a agir conforme os algoritmos sugerem que ele deva agir. A partir da necessidade humana de se conectar com outras pessoas, o que leva à busca obsessiva por aprovação e adequação, adolescentes nascidos entre o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000 se tornaram parte de um aumento das estatísticas de casos de depressão e taxas de suicídio.

Daí em diante, o clima de pesadelo do documentário só aumenta. Segundo estes profissionais, o modelo de negócio das redes sociais lucra com a desinformação, já que notícias falsas tendem a se espalhar seis vezes mais rápido que as verdadeiras. Teorias conspiratórias aliciam cada vez mais pessoas. E em um mundo sem diálogos, em que a sociedade se mostra incapaz de discernir com o que é verdade e o que não é, o caos ganha espaço.

O genocídio de uma minoria étnica em Myanmar, em 2018, encontra vestígios na força do Facebook no país e na propagação de fake news. Conflitos em protestos nas ruas, da Europa aos Estados Unidos, costumam ser iniciados nas redes. A ascensão no mundo de políticos de extrema-esquerda e extrema-direita, como Jair Bolsonaro no Brasil, é ligada diretamente ao fenômeno das redes sociais – isso dito pela boca dos próprios que ajudaram a colocar essas redes de pé. O que parecia inofensivo se mostrou devastador. E seus idealizadores, agora, se movimentam para alertar a população. Se é que ainda dá tempo de reverter seus duros efeitos.


TRECHOS TIRADOS DO DOCUMENTÁRIO "O DILEMA

 DAS REDES"  DA NETFLIX.…

Shosana Zuboff (prof. Harvard) : "esses mercados deveriam ser fechados..... já proibimos outros mercados (mercado de órgãos humanos, de escravos, etc.)."

Jaron Lanier (Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais) : "saia do sistema, saia das redes.... ele acha que dentro de 20 anos destruiremos nossa civilização através da ignorância, provavelmente não combateremos o aquecimento, provavelmente destruiremos as democracias do mundo, transformando-as em uma espécie de autocracia disfuncional, provavelmente destruiremos a economia global, provavelmente não sobreviveremos.....”

Bailey Richardson (trabalhou no Instagram) ".... então precisamos mudar tudo....o milagre é a vontade coletiva.... esse sistema não vai mudar sem muita pressão popular.…"

Tristan Harris foi especialista ético do Google, em depoimento no senado americano : "Não é que a tecnologia em si seja uma ameaça existencial. É a capacidade da tecnologia de trazer à tona o pior da sociedade. O pior da sociedade é uma ameaça existencial. Se a tecnologia cria caos em massa, indignação, incivilidade, falta de confiança um no outro, solidão, alienação, mais polarização, mais polarização eleitoral, mais populismo, mais distração e incapacidade de focar nos problemas reais. Isso é a sociedade. E agora a sociedade se vê incapaz de se curar e reverte a um estado de caos. Isso afeta a todos inclusive quem não usa esses produtos. Essas coisas viraram Frankensteins digitais que estão transformando o mundo em seu pior....seja na saúde mental das crianças, seja na política e nos discursos políticos, sem assumir a responsabilidade por tais ações.... acho que as plataformas precisam ser responsabilizadas quando admitem propaganda política.… a tecnologia vai se integrar mais às vidas das pessoas, não menos.....os algoritmos ficarão melhores em deduzir o que te mantém na tela, não ficarão piores…...é utopia e distopia ao mesmo tempo.… não dá pra voltar atrás.... as empresas estão agindo como se fossem governos, não há regulamentação nem regras para elas, não temos nenhuma lei que regulamenta a privacidade digital, há momentos que os interesses das pessoas são mais importante do que os lucros bilionários de uma empresa gigante… o intuito das redes é criar dois lados que não se escutam mais....que não querem mais dialogar e não confiam um no outro.... o Google e a inteligência artificial não sabem distinguir o que é verdade e o que não é.... eles não tem um padrão do que é verdade, se baseiam nos cliques, ....e se não acreditamos o que é verdade, não conseguiremos resolver nenhum de nossos problemas....













segunda-feira, 7 de setembro de 2020

 

Domenico Losurdo, pensador que fez Caetano abandonar o liberalismo, contrapõe o Marxismo Oriental ao Marxismo Ocidental.

Sob o título "Domenico Losurdo, um crítico da hipocrisia liberal", a revista Jacobin publica artigo do historiador David Broder, conhecedor do movimento comunista na França e Itália, com tradução de Marianna Braghini

6 de setembro de 2020


Falecido em junho de 2018, Domenico Losurdo foi um marxista-leninista italiano que criticou acidamente o pensamento liberal-burguês e o revisionismo no próprio movimento socialista e comunista. 

O cantor e compositor Caetano Veloso disse em entrevista ao programa Conversa com Bial, na TV Globo, na noite desta sexta-feira (4), que tem menos raiva do socialismo hoje em dia e se considera “menos liberalóide” do que há dois anos. Ele disse ter tido contato com leituras críticas ao liberalismo através de "um moço de Pernambuco, Jones Manoel".

Jones Manoel conduz o programa Trincheira Vermelha na TV 247, em que discute temas da história e da geopolítica, desde uma perspectiva marxista. 



TEXTO DA REVISTA JACOBIN

"Pode parecer estranho começar o obituário de alguém de 77 anos de idade dizendo que ele foi levado de nós em seu apogeu. Antes de Domenico Losurdo ser atingido por um tumor cerebral, o marxista italiano estava no auge de sua capacidade. Somente ano passado ele publicou uma polêmica contra as pretensões do marxismo ocidental, seguindo um trabalho de 2016, no qual ele lançou um olhar crítico aos projetos de paz através da história", escreve David Broder.

"Como professor emérito na Universidade de Urbino e presidente da Associazione Marx XXI, Losurdo, mesmo em idade avançada, manteve suas atividades ao redor do mundo em conferências e apresentações de livros. Sempre entusiasmado em promover seu pensamento no âmbito internacional, até mesmo logo antes de sua morte, ele estava trabalhando em um novo capítulo para a versão em inglês de seu livro “Antonio Gramsci: From Liberalism to Critical Communism.”

Esta é apenas uma das três obras de Losurdo em inglês previstas para serem publicados, continuando o esforço em tornar seu trabalho conhecido para camadas de leitores ainda mais amplas. Ele já estava entre os mais reconhecidos marxistas italianos em âmbito internacional, enquanto um robusto militante e historiador de filosofia, sempre atento em expor as realidades materiais, as condições históricas e sociais, que estiveram por trás de todos os ideais e sistemas filosóficos.

Particularmente, isso tomou a forma de um ataque perfurante à hipocrisia liberal, mais notadamente expresso em um trabalho inicialmente publicado em italiano, em 2005, depois traduzido para o inglês pela Verso em 2011, como “Liberalism: A Counter History” [“Contra-História do Liberalismo“]. Losurdo expôs a violência colonial e a posse de escravos que passaram de mão em mão com a ascensão do projeto liberal no século XVIII, apontando acidamente seus limites, a exclusão e a hipocrisia no coração do alegado universalismo do liberalismo.

Isso, inclusive, auxiliou os esforços de Losurdo, na defesa das experiências soviética e chinesa de construção do socialismo. Ele não explicou meramente seus crimes e erros (os quais ele admitia livremente) como uma resposta ao clima de guerra sob as quais emergiram. Além disso, ele expôs as falsas assimetrias que levaram os liberais a comparar a violência comunista e nazista, como se o colonialismo ocidental pudesse de alguma forma ser separado.

Revisionismo e anti-revisionismo

Domenico Losurdo foi, de fato, um escritor marcadamente político. Nascido no ano em que a Itália fascista se uniu à Alemanha nazista em sua guerra contra a URSS, ele foi parte de uma geração radicalizada nos anos 1960, na qual o “anti-revisionismo” maoísta exerceu uma forte influência em figuras da extrema esquerda. A partir deste contexto marxista-leninista, nos anos 1980 ele se juntou ao Partido Comunista Italiano (PCI) e posteriormente, após sua dissolução em 1991, ao esforço de refundação do partido, o Rifondazione Comunista (PRC).

Professor de filosofia da história na Universidade Urbino e um reconhecido estudioso de Hegel, em décadas mais recentes, o trabalho de Losurdo adotou um particular caráter proferidamente “militante”. Deparado com o colapso da União Soviética e com a corrida do triunfalismo liberal, Losurdo construiu críticas devastadoras àqueles que pintaram esta última ideologia como o prenúncio de um abrangente progresso humano.

Isso estava mais expresso, particularmente, em seu livro “Contra-História do Liberalismo”. Contrário à sua própria auto-hagiografia, Losurdo explorou o lado obscuro do afloramento do liberalismo em potências industriais como Inglaterra, Holanda e os Estados Unidos. Não somente estas sociedades construíram um legado de escravidão e expansão dos circuitos comerciais de escravos, bem como radicalizaram e formalizaram suas premissas na supremacia branca.

Para esta Contra-História, como também para seu estudo de “Democracia ou bonapartismo”, Losurdo revelou a dependência essencial do liberalismo com a segregação, criando barreiras de propriedade e raça. O liberalismo não só herdou as hierarquias do mundo pré-capitalista, como também criou outras novas; ele não apenas subverteu a monarquia e a regra hereditária, bem como impôs novas formas de divisão e exclusão nas massas coloniais e metropolitanas.

Aqui, Losurdo obteve maior sucesso ao expor as sombrias origens do liberalismo e os crimes nele engendrados, do que ao apresentar sua necessidade fundamental e permanente de formas particulares de exclusão (como a escravidão). Suas acusações à hipocrisia liberal frequentemente aparecem como se fossem uma demanda para o fim das falsas assimetrias e pontos cegos; o que significa dizer, a completa realização de um proclamado universalismo, mais do que sua simples destruição.

Esta determinação em historicizar o pensamento político é também chave para a defesa de Losurdo do socialismo ao estilo soviético. Contra aqueles que diriam que comunismo funciona em teoria, mas não na prática, seu trabalho coloca a questão de que o mesmo também poderia ser dito do liberalismo. A Contra-História pergunta, “assim como com qualquer outro grande movimento histórico,” não apenas o que o liberalismo pretende em sua “pureza abstrata,” mas em suas relações sociais reais.

Assim que a polêmica pesquisa de Losurdo sobre liberalismo estabeleceu os valores que reivindica, sob a áspera luz de sua realidade histórica, seus escritos sobre as críticas à URSS buscaram destacar o contexto histórico que os liberais preferem ignorar. Particularmente, Losurdo era incisivamente crítico à escola “totalitária” representada por Hannah Arendt e uma manada de historiadores anticomunistas, que por sua vez reduziram Stalin e Hitler à “irmãos gêmeos.”

Enquadrando o liberalismo nos termos da exclusão, Losurdo buscou reformular nossa visão do século XX, ao centralizá-la no colonialismo. A guerra nazista por “espaço habitável no Oriente” foi uma guerra colonial de agressão contra a URSS: ela pegou as ferramentas que a Grã-Bretanha, Bélgica e França utilizaram na África e Ásia, modernizando-as e reclinando-as para o continente europeu. Mesmo tal empreendimento assassino poderia assegurar a fidelidade de um pensador como Martin Heidegger, pois, sua cultura não era, de fato, tão inovadora assim. 

Neste sentido, Losurdo argumenta que o rótulo do “totalitarismos” difamou deliberadamente a URSS, enquanto reduzia à um plano secundário a violência massiva que já vinha sendo perpetrada por poderes coloniais nas décadas recentes. Por que nós ouvimos muito mais sobre o Massacre de Katyn e Holodomor do que sobre a carnificina dos Mau Mau ou da Fome em Bengala? Na visão de Losurdo, comparar Stalin a Hitler era como colocar Toussaint Louverture, líder da rebelião dos escravos haitianos, na mesma base moral que os proprietários de escravos franceses, simplesmente porque ambos os lados tinham lideranças “autoritárias”.

Foi sem dúvida uma reformulação provocativa. Losurdo estava tranquilo em pisar nos dedos dos pés, mas algumas vezes era tonalizado como alguém que queria contrariar. Embora ele reconhecesse os aspectos exorbitantes e paranoicos da liderança de Stalin, seus esforços para relativizá-lo eram frequentemente governados por um zelo polêmico injustificado pelas evidências reunidas. Isso tornou sua reformulação do stalinismo mais “interessante” do que necessariamente persuasiva.


Construindo o socialismo

Losurdo há muito tempo desafia a esquerda que, em sua visão, criticava abstratamente esforços reais de construção do socialismo sem sentir a necessidade de sujar suas mãos com escolhas pragmáticas. Isso foi resumido pelo seu recente estudo sobre o marxismo ocidental. Insistindo que, longe da URSS estar “degenerando-se” por conta de seu isolamento, a esquerda da Europa Ocidental que atrofiou-se em uma gama de debates por conta de seu isolamento dos processos reais de mudança social.

Nesta veneração da URSS e, verdade, da China (a qual ele continuava a ver como um país no caminho rumo ao socialismo, por meio de um tipo moderno de Nova Economia Política), Losurdo rejeitou agudamente qualquer inutilidade da história do século XX. Ele era mordaz com teóricos modelados na esquerda ocidental, de Theodor Adorno a Michel Foucault, e buscou expor os pontos cegos e mesmo o racismo alicerçado na rejeição dos esforços orientais de “construção do socialismo”.

O engajamento político de Losurdo foi uma ponte na divisão entre a história do século XX e o presente. O pequeno Partido Comunista no qual ele era envolvido nos anos recentes, autodenominado em homenagem ao PCI de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, buscou reviver o partido que se dissolveu após a queda do Muro de Berlim. Entretanto, o trabalho de Losurdo tendia a evitar qualquer exame dos processos específicos que levaram o histórico PCI à destruição. 

Atualmente, a esquerda italiana ainda precisa se recuperar da morte do PCI, ou talvez, de sua vida. Suas estruturas zumbis ainda permanecem conosco, como no neoliberal Partido Democrata; sua residual influência cultural incorpora a nostalgia de uma grande esquerda de outrora que é incapaz de dar vida à qualquer coisa nova. A extrema-direita está na ofensiva e parece faltar esperança; talvez seja mais fácil agarrar-se à velhas certezas do que iniciar um projeto comunista do zero.

Os esforços de Losurdo em recuperar esta herança eram frequentemente questionáveis, mas sempre estimulantes. E seu pensamento ainda está conosco. O ano de 2019 viu edições de seu livro “Democracia ou bonapartismo” (Unesp), sua vasta biografia de Nietzsche e seu estudo de Antonio Gramsci (ambos com Brill). Outras traduções previstas incluem estudos de Hegel e de Kant. Por meio destes títulos e da descoberta de seus trabalhos por novos leitores, o pensamento penetrante de Losurdo irá sobreviver ao tumor que o matou". 


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Fontes: Saiba quem é Domenico Losurdo, pensador que fez Caetano abandonar o liberalismo

https://www.brasil247.com/ideias/saiba-quem-e-domenico-losurdo-pensador-que-fez-caetano-abandonar-o-liberalismo

Domenico Losurdo, um crítico da hipocrisia liberal

https://jacobin.com.br/2019/11/domenico-losurdo-um-critico-da-hipocrisia-liberal/