Sete
potências e um destino: conviver com o sucesso da civilização
chinesa, por José Luís Fiori
Soa absurdo
aos ouvidos chineses quando os governantes ocidentais falam de uma
luta que os separa da China, entre a democracia e o autoritarismo,
sem que os ocidentais consigam se dar conta de que esta polaridade é
inteiramente ocidental.
Por Jornal
GGN O jornal de todos os Brasis
23 de
junho de 2021
por
José Luís Fiori
China
permanece sendo uma “civilização” que finge ser um Estado-nação
[…] e que nunca produziu temática religiosa de espécie alguma, no
sentido ocidental. Os chineses jamais geraram um mito da criação
cósmica e seu universo foi criado pelos próprios chineses.
Kissinger,
H. Sobre a China. Rio de Janeiro: Ed.
Objetiva, 2011, p. 28.
O
espetáculo foi montado de forma meticulosa, em cenários magníficos,
e com uma coreografia tecnicamente perfeita. Primeiro foi o encontro
bilateral entre Joe Biden e Boris Johnson, os líderes das duas
grandes potências que estiveram no centro do poder mundial nos
últimos 300 anos. A assinatura de uma nova Carta Atlântica foi a
forma simbólica de reafirmar a prioridade da aliança
anglo-americana frente aos demais membros do G7 e seus quatro
convidados, que se reuniram nos dias 11 e 12 de junho numa praia da
Cornuália, sul da Inglaterra, como um ritual de retorno dos Estados
Unidos à liderança da “comunidade ocidental”, depois dos anos
isolacionistas de Donald Trump. Em seguida, os sete governantes
voltaram a se encontrar em Bruxelas, na reunião de cúpula da OTAN
encarregada de redefinir a estratégia da organização militar
euro-americana para as próximas décadas do século XXI. E ali
mesmo, na capital da Bélgica, o presidente americano reuniu-se com
os 27 membros da União Europeia pela primeira vez desde o Brexit e,
portanto, sem a presença da Grã-Bretanha. Por fim, para coroar esse
verdadeiro tour de
force de Joe Biden
em território europeu, o novo presidente dos Estados Unidos teve um
encontro cinematográfico com Vladimir Putin num palácio do século
XVIII, no meio de um bosque de pinheiros, às margens do Lago Leman,
em Genebra, Suíça.
A reunião do G7 discutiu três
temas fundamentais: a pandemia, o clima e a retomada da economia
mundial. Com relação à pandemia, as sete potências anunciaram a
doação coletiva de um bilhão de vacinas para os países mais
pobres; com relação ao clima, reafirmaram sua decisão coletiva de
cumprir com os objetivos do Acordo de Paris; e com relação à
reativação da economia global, anunciaram um projeto de
investimentos em infraestrutura, nos países pobres e emergentes,
sobretudo no entorno da China, no valor de 40 trilhões de dólares,
em clara competição com o projeto chinês do Belt
and Road, lançado
em 2013, e que já incorporou mais de 60 países, inclusive na
Europa. Na reunião da OTAN, com a presença de Joe Biden, pela
primeira vez na sua história, a organização militar liderada pelos
Estados Unidos declarou que seu novo e grande “desafio sistêmico”
vem da Ásia, e responde pelo nome de China. Este se transformou no
estribilho de todos os demais discursos e pronunciamentos do
presidente americano: de que o mundo vive uma disputa fundamental
entre países democráticos e países autoritários, destacando-se,
neste segundo grupo, uma vez mais, a China. Por fim, na reunião de
cúpula entre Biden e Putin, que foi sobretudo um espetáculo, os
dois interpretaram papéis rigorosamente programados, reafirmando
suas divergências e concordando apenas no seu desejo de preservar e
administrar em comum seu duopólio atômico mundial.
O problema desse espetáculo
programado com tamanho esmero é que seu enredo e sua coreografia já
estão ultrapassados. Em certos momentos, inclusive, um observador
desatento poderia imaginar que tivesse voltado aos anos 1940-50 do
século passado, quando foi assinada a primeira Carta Atlântica, em
1941, começou a Guerra Fria, em 1946, foi criada a OTAN, em 1949, e
a atual União Europeia deu seus primeiros passos, em 1957. Para não
falar também do lançamento pelos Estados Unidos – ainda nos anos
40 – do seu Plano Marshall de investimentos na reconstrução da
Europa e o Projeto Desenvolvimentista de mobilização de capitais
privados para investimento no “Terceiro Mundo”, em competição
direta com a atração exercida pelo modelo econômico soviético que
havia saído vitorioso na sua guerra contra o nazismo. A diferença é
que, no revival
atual, a promessa
de vacinas do G7 está muito aquém dos 11 bilhões solicitados pela
OMS; da mesma forma, as novas metas climáticas das sete potências
não inovaram em praticamente nada com relação ao que elas já
haviam decidido previamente; e por fim, o novo “projeto
desenvolvimentista” proposto pelos Estados Unidos e apoiado pelo G7
envolve recursos e contribuições que não foram definidos, empresas
privadas que não foram consultadas, e projetos de investimento que
não têm nenhum tipo de detalhamento. Além disso, a Grã-Bretanha e
os demais países europeus estão divididos e mantêm relações
separadas com a Rússia e com a China; são governos fracos em muitos
casos, porque estão em fins de mandato como na Alemanha e na França,
ou com eleições parlamentares marcadas para 2022, como no caso dos
Estados Unidos, quando os democratas poderão perder sua estreita
maioria congressual, paralisando o governo Biden.
Mais
importante do que tudo isto, entretanto, é que a nova política
externa americana e a estratégia que propôs aos seus principais
aliados ocidentais estão ultrapassadas e são inadequadas para
enfrentar o “desafio sistêmico chinês”. A elite política e
militar americana e europeia segue prisioneira do seu sucesso e de
sua vitória na Guerra Fria, e não consegue perceber as diferenças
essenciais que distinguem a China da antiga União Soviética.
Não apenas porque a China é hoje um sucesso econômico
indispensável para a economia capitalista internacional, mas também
porque a China já foi a economia mais dinâmica do mundo ao longo
dos últimos vinte séculos. Basta dizer que nos “18 dos últimos
20 séculos, a China produziu uma parcela maior do PIB mundial total
do que qualquer sociedade ocidental. E ainda, em 1820, ela produzia
mais de 30% do PIB mundial – quantidade que ultrapassava o PIB da
Europa Ocidental, da Europa Oriental e dos Estados Unidos
combinados”[1].
Além
do sucesso econômico, o que realmente distingue a China da antiga
URSS, e a situação atual da antiga Guerra Fria, é o fato de a
China ser uma “civilização milenar” muito mais do que um Estado
nacional. E uma civilização que nasceu e se desenvolveu de forma
inteiramente independente da civilização ocidental, com seus
próprios valores e objetivos que não foram alterados por seu novo
sucesso econômico.
Por
isso, soa absurdo aos ouvidos chineses quando os governantes
ocidentais falam de uma luta que os separa da China, entre a
democracia e o autoritarismo, sem que os ocidentais consigam se dar
conta de que esta polaridade é inteiramente ocidental. E
que, na verdade, trata-se de uma disputa que está sendo travada
neste momento dentro das próprias sociedades ocidentais, sobretudo
nos Estados Unidos, mas também em alguns países europeus, onde a
democracia vem sendo ameaçada pelo avanço de forças autoritárias
e fascistas. A civilização chinesa não tem nada a ver com isso,
nem pretende se envolver com essa briga interna do Ocidente. Sua
história e seus princípios éticos e políticos nasceram e se
consolidaram há três mil anos, muito antes das civilizações
greco-romana e cristã do Ocidente. Até hoje, os chineses não
tiveram nenhum tipo de religião oficial, nem jamais compartilharam
seu poder imperial com nenhum tipo de instituição religiosa,
nobreza hereditária ou “burguesia” econômica, como aconteceu no
Império Romano e em todas as sociedades europeias. Durante suas
sucessivas dinastias, o império chinês foi governado por um
mandarinato meritocrático que pautou sua conduta pelos princípios
da filosofia moral confuciana, laica e extremamente hierárquica e
conservadora, que foi adotada como doutrina oficial pelo Império Han
(206 a.C.-221 d.C.), e depois se manteve como a bússola ética do
povo e da elite governante chinesa até os dias de hoje. Uma visão
absolutamente rigorosa e hierárquica do que seja um “bom governo”,
e do que sejam suas obrigações com o povo e a civilização
chinesa.
Foi o Império Han que
construiu a “Rota da Seda” e começou a instituir o sistema de
relações “hierárquico-tributárias” da China com seus povos
vizinhos. Depois a China dividiu-se várias vezes, mas sempre voltou
a reunificar-se, mantendo sua fidelidade à sua civilização e à
sua moral confuciana. Isto aconteceu no século IX, com a Dinastia
Song (960-1279), e voltou a ocorrer com a Dinastia Ming (1368-1644),
que reorganizou o Estado chines e liderou uma nova “época de ouro”
da civilização chinesa, de grande criatividade e conquistas
territoriais. E o mesmo voltaria a ocorrer, finalmente, durante
a Dinastia Qing, entre 1644 e 1912, quando a China duplicou seu
território.
Depois, entretanto, a China
foi derrotada pela Grã-Bretanha e pela França, nas duas Guerras do
Ópio, em 1839-1842 e 1856-1860, e foi submetida a um século de
assédio e humilhação por parte das potências ocidentais, até os
chineses reassumirem seu próprio comando após a sua revolução
republicana de 1911, e a vitoriosa revolução comunista de 1949.
A
história recente é mais conhecida de todos: nos últimos 30 anos, a
economia chinesa foi a que mais cresceu, e hoje é a segunda maior
economia do mundo, devendo superar a norte-americana até o final da
terceira década do século XXI. Nos últimos cinco anos, a China
logrou erradicar de seu território a pobreza absoluta, venceu a luta
contra a pandemia, vacinou mais de um bilhão de chineses e já
exportou ou doou cerca de 600 milhões de vacinas para os países
mais pobres do sistema mundial. Ao mesmo tempo, nos primeiros meses
de 2021, a China pousou o seu robô Zhu Ronc na superfície do
planeta Marte; iniciou a montagem e colocou em funcionamento sua
própria estação espacial ao redor da Terra – Tiangong; enviou
com sucesso a nave Shezhou 12, com três taikonautas para
permanecerem três meses na nova estação; anunciou para 2024 a
colocação em órbita de um telescópio 300 vezes mais potente do
que o Hubble, dos norte-americanos[2];
tornou público o roadmap
feito junto com os russos para a criação de um laboratório e
experimentação lunar, com instalações colocadas na superfície e
na órbita da Lua; concluiu a construção do protótipo de
computador quântico – batizado como Jihuzang – capaz de executar
certos tipos de cálculo 100 trilhões de vezes mais rápido que o
atual supercomputador mais potente do mundo; avançou na construção
do seu reator de fusão nuclear (o Toka
Mak Experimental Super Conductor),
o “sol artificial” que já atingiu uma temperatura de 160 milhões
de graus centígrados. Por outro lado, com os pés na terra, a China
já é hoje, depois de apenas vinte anos do começo do seu programa
de trens de alta velocidade, o país com a maior rede de trens-bala,
e acabou de apresentar o protótipo de seu novo trem com levitação
magnética que poderá alcançar até 800 km por hora.[3]
Assim, apesar de todo o
estrondoso sucesso social, econômico e tecnológico, a China não
está se propondo ao mundo como um modelo de validade universal, nem
está se propondo substituir os Estados Unidos como centro
articulador do “poder global”. Não há dúvida de que seu
sucesso já a transformou numa vitrine extremamente atrativa para o
mundo. Mesmo assim, o que mais aflige os governantes ocidentais é o
sucesso de uma civilização diferente da sua e que não mostra o
menor interesse em disputar ou substituir a tábua de valores da
Cornuália. O que parece que as potências ocidentais não conseguem
perceber inteiramente é que está instalada no mundo uma nova
espécie de “equipotência civilizatória” que já rompeu com o
monopólio ético do Ocidente, tornando público um dos segredos mais
bem guardados pelas grandes potências vitoriosas de todos os tempos:
o fato de que só elas definem os valores e a regras do sistema
mundial, porque só elas fazem parte do que o historiador e teórico
inglês Edward Carr chamou de “círculo privilegiado dos criadores
da moral internacional”.[4]
Hoje
parece rigorosamente impossível reverter a expansão social,
econômica e tecnológica chinesa. E seria uma “temeridade global”
tentar bloqueá-la através da guerra convencional. Assim mesmo, se
prevalecerem a onipotência e a insensatez das “potências
catequéticas”, o “acerto de contas” do Ocidente com a China já
está agendado e tem lugar e hora marcados: será na Ilha de Taiwan.
Mas não é impossível imaginar um futuro em que o hiperpoder
econômico e militar dessas grandes civilizações que dominarão o
mundo no século XXI impeça uma guerra frontal e possibilite um
longo período de “armistício imperial” em que se possa testar a
proposta chinesa de um mundo em que todos ganhem, como vem defendendo
o presidente chinês Xi Jinping, ou mesmo a proposta alemã de uma
“parceria competitiva” com a China, como propõe Armin Laschet,
provável sucessor de Angela Merkel. O problema é que um “armistício
imperial” desse tipo requer que as “sete potências da Cornuália”
abram mão de sua “compulsão catequética” e do seu desejo de
converter o resto do mundo aos seus próprios valores civilizatórios.
Junho
de 2021
REFERÊNCIAS
[1]
Kissinger, H. IDEM p:29
[2]
Para efeito de comparação, o Programa Espacial Chines foi criado em
1991, três anos apenas antes da criação da Agencia Espacial
Brasileira, em 1994.
[3]
Ainda para efeito de comparação, o Brasil havia planejado há uma
década atrás, inaugurar seu primeiro trem-bala importado, no dia 30
de junho de 2020.
[4]
Carr, E. H., The
Twenty Years’ Crisis, 1919-1939.
New York: Perennial, 2001, p. 80.
FONTE:
https://jornalggn.com.br/china/sete-potencias-e-um-destino-conviver-com-o-sucesso-da-civilizacao-chinesa-por-jose-luis-fiori/?fbclid=IwAR2KhBtjbtFTHlAbPPDnVLY_17OvO7IUHCBcu14V7aDGt6wHCfdZWImpklc