sábado, 20 de março de 2021

O FIM DO CAPITALISMO INDUSTRIAL NO OCIDENTE

 

O Ocidente diz adeus ao capitalismo industrial

História de uma regressão: contrariando até as previsões de Marx, sistema reabilitou rentismo feudal e, associado a ele, multiplica privilégios e desigualdade. Mas daí também seu declínio - e sua impotência diante de países como China.

(trecho de introdução do artigo de Michael Hudson no site Outras Palavras, selecionado pelo prof. Ladislau Dowbor)….. ver restante no site

https://dowbor.org/2021/03/o-ocidente-diz-adeus-ao-capitalismo-industrial.html?fbclid=IwAR1B9OFDHaVQ2TvqNb_Q1U8imd9fFsYgUo7SNRqPtWePKuFkccHdVWNlaE8

 

Michael Hudson

Marx e muitos dos reformadores menos radicais que lhe foram contemporâneos viam o papel histórico do capitalismo industrial como sendo o de remover a herança do feudalismo – os latifundiários, banqueiros e monopolistas que extraíam renda econômica (ou renta) sem produzir valor real. Mas aquele movimento de reforma fracassou. Hoje o setor das Finanças, Seguros e Imobiliário (FIRE, em inglês, pelas iniciais de Finance, Insurance, Real Estate recuperou o controle do Estado, criando economias neo-rentistas.

O objetivo deste capitalismo financeiro pós-industrial é o oposto daquele do capitalismo industrial bem conhecido dos economistas do século XIX. Ele busca riqueza primariamente através da extração de renda econômica, não da formação de capital industrial. O favorecimento fiscal para o setor imobiliário, a privatização do petróleo e da extração mineral, os bancos e os monopólios de infraestrutura aumentam o custo de vida e da atividade empresarial. O trabalho está sendo explorado crescentemente pela dívida aos bancos, dívida estudantil, dívida do cartão de crédito, ao passo que a habitação e outros preços são inflacionados com o crédito, deixando menos rendimento para gastar em bens e serviços quando as economias sofrem deflação da dívida.

A Nova Guerra Fria de hoje é um combate para internacionalizar este capitalismo rentista pela privatização e financeirização global dos transportes, educação, cuidados de saúde, prisões e policiamento, correios e comunicações – além de outros setores que antigamente eram mantidos no domínio público – das economias europeias e americanas, de modo a manter seus custos baixos e minimizar seus custos de estrutura.

Nas economias ocidentais tais privatização reverteram o movimento do capitalismo industrial para minimizar custos de produção e distribuição socialmente desnecessários. Além dos preços de monopólio para serviços privatizados, os administradores financeiros estão canibalizando a indústria pela alavancagem da dívida e elevados desembolsos de dividendos para aumentar preços de ações.

As economias neo-rentistas de hoje obtêm riqueza principalmente por meio da busca de renta. A financeirização converte a renda imobiliária e monopólica em empréstimos bancários, ações e títulos. Este processo tem sido alimentado desde 2009 pelo Quantitative Easing (“Flexibilização Quantitativa”) dos bancos centrais dos EUA. União Europeia, Inglaterra, Japão e outros. [Significa emitir volumes maciços de dólares, euros, libras ou ienes e despejá-los nas mãos de mega-especuladores, recebendo em troca títulos públicos que têm em seu poder. A inundação de dinheiro espalha-se por todo o mundo, refletindo, por exemplo, na super-valorização dos preços dos imóveis (Nota de Outras Palavras)]

Famílias e empresas afundam em dívida, devendo renda e serviço de dívida aos setores FIRE. Esta sobrecarga rentista deixa menos rendimento de salários e lucros para gastar em bens e serviços, provocando o fim dos 75 anos de expansão vividos pelos EUA e Europa a partir o término da II Guerra Mundial em 1945.

Estas dinâmicas rentistas são o oposto do que Marx descreveu como leis do movimento do capitalismo industrial. A banca alemã, à época, financiava a indústria pesada sob Bismarck, em associação com o Reichsbank e os militares. Mas em outros lugares o empréstimo bancário raramente financiou novos meios de produção tangíveis. Aquilo que prometia ser uma dinâmica democrática e em última análise socialista degradou-se em direção ao feudalismo e à servidão da dívida, com a classe financeira de hoje desempenhando o papel que a classe dos senhores da terra tinha em tempos pós-medievais……..

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*Michael Hudson: Presidente do Instituto para Estudo das Tendências Econômicas de Longo Prazo (ISLET). Professor de Economia na Universidade do Missouri. Autor de “J is for Junk Economics” (2017), “Killing the Host” (2015), “The Bubble and Beyond” (2012), “Super-Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (1968 & 2003)”, entre outros. Conselheiro econômico de governos e agências econômicas na Islândia, Letônia e China.

domingo, 14 de março de 2021

ALBERT EINSTEIN ERA SOCIALISTA

 

EINSTEIN ESCREVEU “PORQUE SOCIALISMO?” EM 1949

Por que Socialismo? Albert Einstein - Maio 1949

Artigo escrito especialmente para o primeiro número da revista marxista estadunidense Monthly Review, lançada em maio de 1949, e está disponível em http://monthlyreview.org/2009/05/01/why-socialism/

 

Será aconselhável que um não especialista em assuntos econômicos e sociais manifeste pontos de vista sobre o tema “socialismo”? Por várias razões, eu acredito que sim.

Comecemos considerando a questão pelo ponto de vista epistemológico [isto é, que analisa o próprio conhecimento científico]. Poderia parecer que não houvesse diferenças metodológicas essenciais entre a Astronomia e a Ciência da Economia: nos dois campos, os cientistas tentam descobrir leis que sejam aceitáveis de modo generalizado para um determinado grupo de fenômenos, com a finalidade de tornar compreensível a interconexão desses fenômenos do modo mais claro possível.

Na realidade, diferenças metodológicas existem. No campo da Economia, a descoberta de leis gerais é dificultada pela circunstância de que os fenômenos econômicos observáveis são com frequência afetados por muitos fatores que é muito difícil avaliar separadamente.

Além disso, como é bem sabido, a experiência acumulada desde o início do assim chamado período civilizado da história humana tem sido grandemente influenciada e limitada por fatores cuja natureza de nenhum modo é exclusivamente econômica.

Por exemplo, a maioria dos grandes Estados da história deveu sua existência à conquista. Os povos conquistadores estabeleceram a si mesmos, legal e economicamente, como a classe privilegiada do território conquistado; apossaram-se do monopólio da propriedade da terra e designaram uma classe sacerdotal a partir de suas próprias fileiras. Os sacerdotes, no controle da educação, fizeram da divisão da sociedade em classes uma instituição permanente, criando um sistema de valores pelo qual o comportamento social das pessoas passou a ser guiado desde então, em grande medida em nível inconsciente.

Mas a tradição histórica começou ontem, por assim dizer. Em nenhum lugar nós superamos de fato o que Thorstein Veblen chamou de “fase predatória” do desenvolvimento humano. Os fatos econômicos observáveis pertencem a essa fase, e as leis que podemos derivar deles não são aplicáveis a outras fases. Como o verdadeiro propósito do socialismo é precisamente superar a fase predatória do desenvolvimento humano e avançar para além dela, a Ciência Econômica em seu estado atual pode esclarecer bem pouco sobre a sociedade socialista do futuro.

Em segundo lugar, o socialismo se direciona para uma finalidade socioética. A ciência, no entanto, não tem o poder de criar finalidades, e muito menos de instilá-las nos seres humanos; a ciência pode, no máximo, fornecer os meios com que atingir certas finalidades. As finalidades são concebidas por personalidades com ideais éticos elevados – ideais esses que, quando não são natimortos e sim cheios de vida e vigor – são adotados e levados adiante por aquela multitude de seres humanos que, de modo parcialmente inconsciente, terminam por determinar a evolução da sociedade.

Por essas razões, deveríamos nos precaver no sentido de não superestimar a ciência e os métodos científicos quando o que está em questão são problemas humanos - e não deveríamos presumir que somente especialistas têm direito a se manifestar sobre as questões que afetam a organização da sociedade.

Incontáveis vozes vêm afirmando, já desde há algum tempo, que a sociedade humana está passando por uma crise; que sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico dessa situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou até mesmo hostis ao grupo a que pertencem, seja o pequeno grupo ou ao grupo de maior escala. Permitam-me recordar aqui uma experiência pessoal para ilustrar o que quero dizer: não faz muito, eu debatia com um homem inteligente e de boa disposição sobre a ameaça de mais uma guerra – o que, na minha opinião, poria em sério perigo a existência da humanidade – e observei que somente uma organização supranacional ofereceria proteção contra esse perigo. Nesse ponto o meu visitante me disse, com toda calma e indiferença: “Mas por que você se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?”

Tenho certeza que apenas um século atrás ninguém teria declarado algo desse tipo com toda essa despreocupação. Temos aí uma declaração de um homem que lutou em vão para alcançar um equilíbrio interior e mais ou menos perdeu a esperança de alcançá-lo. É expressão de uma dolorosa solidão e isolamento, de que tanta gente sofre hoje em dia. Qual é a causa? Existe saída?

É fácil levantar essas perguntas, mas é difícil respondê-las com qualquer grau de segurança. No entanto eu preciso tentar, o melhor que puder, embora esteja bem consciente de que nossos sentimentos e aspirações são muitas vezes contraditórios e obscuros, e não podem ser expressos em nenhuma fórmula simples e fácil.

O homem é ao mesmo tempo um ser solitário e um ser social. Como ser solitário, ele tenta proteger sua própria existência e a dos que lhe são mais próximos, satisfazer seus desejos pessoais, desenvolver suas habilidades inatas. Como ser social, busca conquistar o reconhecimento e afeição dos seus companheiros de humanidade, compartilhar de seus prazeres, confortá-los em seus sofrimentos, melhorar suas condições de vida. Somente a existência dessas diferentes aspirações, muitas vezes conflitantes, já responde pelo caráter especial de uma pessoa, e sua combinação específica determina a medida em que o indivíduo consegue, por um lado, alcançar um equilíbrio interior e, por outro lado, consegue contribuir para o bem-estar da sociedade.

É bem possível que a intensidade relativa desses dois impulsos seja, em seu principal, determinada pela hereditariedade – mas a personalidade que termina emergindo é formada em ampla medida pelo ambiente em que acontece de a pessoa se encontrar durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que ela cresce, pela tradição daquela sociedade, e pelo valor que a sociedade atribui a este ou àquele tipo de comportamento.

Para o indivíduo humano, o conceito abstrato “sociedade” significa a soma de suas relações diretas e indiretas com os seus contemporâneos e com todas as pessoas das gerações anteriores. O indivíduo é capaz de pensar, sentir, aspirar e trabalhar por si mesmo; mas [ao mesmo tempo] ele depende tanto da sociedade – em sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensá-lo ou entendê-lo fora da moldura que é o contexto social. É “a sociedade” o que lhe proporciona comida, roupas, um lar, a ferramentas do seu trabalho, a linguagem, as formas de pensar, e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida se faz possível mediante o trabalho e realizações dos muitos milhões, passados e presentes, que estão escondidos por trás da pequena palavra “sociedade”.

É evidente, portanto, que a dependência do indivíduo em relação à sociedade é um fato da natureza que não pode ser abolido – tanto quanto o é no caso das formigas e abelhas. No entanto, enquanto o inteiro processo de vida das formigas e abelhas é determinado nos mínimos detalhes por instintos hereditários rígidos, o padrão social e os inter-relacionamentos dos seres humanos são altamente variáveis e suscetíveis de mudanças. A memória, a capacidade de realizar novas combinações e o dom da comunicação verbal possibilitaram desenvolvimentos, entre os seres humanos, que não são ditados por necessidades biológicas. Tais desenvolvimentos se manifestam em tradições, instituições e organizações; em literatura; em realizações científicas e técnicas; em obras de arte. Isso explica como acontece de o ser humano ser capaz de, em certo sentido, influir em sua vida mediante a sua própria conduta, e de que nesse processo o pensamento e a vontade conscientes consigam desempenhar um papel.

O ser humano adquire ao nascer, através da hereditariedade, uma constituição biológica que precisamos considerar determinada e inalterável, inclusive os impulsos naturais que são característicos da espécie humana. Em acréscimo, ao longo de sua vida ele adquire uma constituição cultural que ele adota da sociedade por meio da comunicação e de muitos outros tipos de influências. É a sua constituição cultural que está sujeita a mudanças com a passagem do tempo, e que determina em vasta medida a relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna nos ensinou, através da investigação comparativa das culturas chamadas de primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode diferir grandemente, dependendo dos padrões culturais e dos tipos de organização que predominam na sociedade. Os que se empenham em melhorar a condição humana podem fundamentar suas esperanças nisso: seres humanos não estão condenados por sua constituição biológica a aniquilarem uns aos outros, nem a estar à mercê de um destino cruel autoinfligido.

Se nos perguntarmos de que modo a estrutura da sociedade e a atitude cultural do ser humano deveriam ser mudados para tornar a vida humana tão satisfatória quanto possível, deveríamos estar sempre conscientes de que há certas condições que somos incapazes de modificar. Como já foi mencionado, para todos os efeitos práticos a natureza biológica do ser humano não é modificável. Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos séculos criaram condições que estão aqui para ficar. Em populações assentadas com considerável densidade, levando em conta os bens que são indispensáveis para a continuidade de sua existência, tornam-se absolutamente indispensáveis uma extrema divisão de trabalho e um aparato produtivo altamente centralizado. Foi-se para sempre o tempo – que, olhando-se para trás, parece tão idílico – em que indivíduos ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente autossuficientes. Há pouco exagero em dizer que a humanidade já constitui uma comunidade planetária de produção e consumo.

Cheguei agora ao ponto em que posso indicar brevemente o que, para mim, constitui a essência da crise do nosso tempo: refere-se à relação do indivíduo com a sociedade. O indivíduo se tornou mais consciente do que nunca de sua dependência da sociedade - mas sua experiência dessa dependência não é a de um bem positivo, um laço orgânico, uma força protetora, e sim a de uma ameaça aos seus direitos naturais, ou até mesmo à sua existência econômica. Além disso, o indivíduo está posicionado na sociedade de modo tal, que os impulsos egoístas da sua constituição recebem reforço constante, enquanto que os seus impulsos sociais, que por natureza já são mais fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, qualquer que seja sua posição na sociedade, vêm sofrendo esse processo de deterioração. Prisioneiros de seu próprio egoísmo sem saber disso, sentem-se inseguros, sozinhos e privados de todo desfrute da vida que seja inocente, simples, não sofisticado. O ser humano somente pode encontrar sentido na vida, curta e arriscada como é, mediante sua dedicação à sociedade.

A anarquia econômica da sociedade capitalista como existe hoje é, na minha opinião, a verdadeira fonte do mal. Vemos diante de nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros se empenham sem cessar em privar uns aos outros dos frutos de seu trabalho coletivo – não por força, mas em inteiro e fiel cumprimento de regras estabelecidas legalmente. A respeito disso, é importante dar-se conta [do papel do fato] de que os meios de produção – quer dizer, tudo o que dá capacidade de produzir bens para os consumidores, bem como bens de capital adicionais – possam ser propriedade privada de indivíduos (e de fato o sejam, em sua maior parte).

Pelo bem da simplicidade, na discussão a seguir chamarei de “trabalhadores” todos os que não têm parte na propriedade dos meios de produção – embora isso não corresponda com exatidão ao uso costumeiro do termo. O proprietário dos meios de produção está em posição de comprar a força de trabalho do trabalhador. Usando os meios de produção, o trabalhador produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista. O ponto essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e aquilo que lhe pagam, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que a contratação do trabalho é “livre”, o que o trabalhador recebe não é determinado pelo valor real dos bens que ele produz, e sim por quais são suas necessidade mínimas, bem como pela relação entre a demanda por força de trabalho por parte dos capitalistas e o número de trabalhadores que competem por empregos. É importante entender que nem mesmo na teoria o pagamento do trabalhador é determinado pelo valor do seu produto.

Capital privado tende a se concentrar em poucas mãos, em parte devido à competição entre os capitalistas, em parte porque o desenvolvimento tecnológico e o crescimento da divisão do trabalho estimulam a formação de unidades de produção maiores, em prejuízo das menores. O resultado desses desenvolvimentos é uma oligarquia do capital privado, cujo enorme poder não pode ser efetivamente controlado sequer por uma sociedade política democraticamente organizada.

Isso é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados por partidos políticos, que são amplamente financiados, ou influenciados de algum outro modo, por capitalistas privados que, para todos os propósitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem de fato e de modo suficiente os interesses dos setores menos privilegiados da população. Além disso, nas condições atuais os capitalistas privados inevitavelmente controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). Torna-se assim extremamente difícil para o cidadão individual, e de fato impossível na maioria dos casos, chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente dos seus direitos políticos.

A situação predominante em uma economia baseada na propriedade privada de capital caracteriza-se então por dois princípios centrais: primeiro, os meios de produção (capital) são possuídos privadamente, e os proprietários dispõem deles como acham melhor; segundo, a contratação de trabalho é livre [isto é, não regulada]. É claro que não há sociedade capitalista pura nesse sentido. Em especial, é preciso registrar que os trabalhadores, através de longas e amargas lutas políticas, conseguiram assegurar uma forma um tanto melhorada de “livre contrato de trabalho” para algumas categorias de trabalhadores. Mas, tomada em seu conjunto, a economia atual não difere muito de um capitalismo “puro”.

A produção é realizada com a finalidade do lucro, não com a do uso. Não existem disposições para garantir que todas as pessoas capazes e dispostas a trabalhar sempre consigam achar emprego; quase sempre existe um “exército de desempregados”. O trabalhador está perpetuamente com medo de perder seu emprego. Devido ao fato de que desempregados e trabalhadores mal pagos não formam um mercado rendoso, a produção de bens de consumo é restrita, o que resulta em grandes privações. O progresso tecnológico resulta com frequência em mais desemprego, em lugar de aliviar a carga de trabalho para todos. O lucro como motivação, em conjunto com a concorrência entre os capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital, a qual leva a crises cada vez mais graves. A competição irrestrita leva a um gigantesco desperdício de força de trabalho, e também àquela deformação da consciência social dos indivíduos, que eu mencionei anteriormente.

Essa deformação dos indivíduos, eu a considero o pior dos males do capitalismo. Nosso sistema educacional inteiro sofre desse mal. Uma atitude competitiva exagerada é inculcada no estudante, que, como preparação para sua futura carreira, é treinado para idolatrar um sucesso aquisitivo.

Estou convencido de que existe apenas um caminho para eliminar esses graves males, e esse é o estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional orientado para objetivos sociais. Em uma economia tal, os meios de produção são propriedade da própria sociedade, e utilizados de modo planejado. Uma economia planejada, que ajusta a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre todos os capazes de trabalhar, e garantiria o sustento de cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de desenvolver suas próprias habilidades inatas, se empenharia em desenvolver nele um senso de responsabilidade por seus companheiros de humanidade, em lugar da glorificação do poder e do sucesso, como temos na sociedade atual.

Contudo é preciso lembrar que uma economia planejada ainda não é socialismo. Uma economia planejada pode ser acompanhada por uma escravização completa do indivíduo. A realização do socialismo requer a solução de alguns problemas sociopolíticos extremamente difíceis: como é possível, em face da centralização abrangente do poder político e econômico, impedir que a burocracia se torne todo-poderosa e prepotente? Como se podem proteger os direitos do indivíduo e garantir com isso um contrapeso democrático ao poder da burocracia?

A clareza quanto às metas e aos problemas do socialismo é da mais alta significação em nossa era de transição. Como, na conjuntura atual, a discussão livre e sem barreiras destes problemas se tornou um grande tabu, eu considero a fundação desta revista um relevante ato de interesse público.


 


 

 

segunda-feira, 8 de março de 2021

A DEMOCRACIA NA CHINA

 QUÃO DEMOCRÁTICA É A CHINA ?


Por Here Comes China 04/03/2021 14:40

 

Assim como os Estados Unidos, a China é uma república e, como os Estados Unidos, diz que é democrática, mas quão democrática é a China? Uma olhada na história é sempre um bom ponto de partida. Aqui está Mêncio [1], o maior discípulo de Confúcio, sobre a relação do Estado com o povo: “o Estado é secundário e o Governante é o menos importante: só quem for do agrado do povo pode governar”.

Na política romana, os cidadãos perdiam o controle dos políticos depois que os elegiam. Essa é uma das maiores fraquezas do sistema e não é de se admirar que, como nossos antepassados romanos, consideremos o governo como nosso maior problema [2]: não podemos obrigá-los a cumprir suas promessas.

Imagine se, em vez de contratar amadores eloquentes, contratássemos profissionais - sociólogos, estatísticos, cientistas políticos, economistas - e pedíssemos a eles que criassem soluções para nossos problemas identificados por pesquisas conduzidas publicamente. Em seguida, eles deveriam apoiar os governos estaduais e locais para implementar as soluções, rastrear a satisfação do público com elas por alguns anos e descartar as políticas malsucedidas

A Califórnia provavelmente tentaria o programa de saúde canadense e se suas contas médicas ficassem cinquenta por cento mais baratas e os californianos exibissem um ganho de três anos na expectativa de vida saudável, nós elegeríamos mil voluntários e os enviaríamos - todas as despesas pagas - a Washington para que pudessem auditar os resultados e aprovar legislação.

É isso que a China faz e é por isso que sua democracia se parece mais com a Procter & Gamble do que com Péricles de Atenas.

 

Quão democrática, de verdade, é a China?

Pesquisas nacionais em grande escala - Pesquisa da Dinâmica do Trabalho Chinês (Sun Yat-Sen University), Painel da Família Chinesa (Peking U), Pesquisa Social Geral da China (Renmin U), Pesquisas da Desigualdade de Renda da China (Beijing Normal U) e centenas de pesquisas feitas por acadêmicos e instituições estrangeiras como a 
Universidade de HarvardGallupEdelmanWorld Values Asian Barometer - rivalizam com as melhores do mundo em técnicas de amostragem, design de questionário e controle de qualidade.

Os resultados, todos disponíveis online, são um tesouro de dados democráticos que Mao criou arrancando o controle das políticas de estudiosos e encomendando pesquisas extensas [3], dizendo: “A opinião pública deve guiar nossas ações”. Hoje, diz o autor Jeff J. Brown:

Meu comitê de bairro e a prefeitura de Pequim estão constantemente fazendo anúncios, convidando grupos de pessoas - locatários, proprietários, com mais de setenta anos, mulheres com menos de quarenta anos, pessoas com ou sem seguro médico, aposentados - para responder a pesquisas. O Partido Comunista da China é o maior pesquisador do mundo por um motivo: a "ditadura do povo" democrática na China está altamente engajada no nível do cidadão comum no dia a dia. Eu sei, porque vivo em uma comunidade chinesa de classe média e os questiono o tempo todo. Acho o governo deles muito mais ágil e democrático do que o que é alardeado domesticamente nos EUA, e falo sério.”


Mao introduziu o sufrágio universal em 1951 (dez anos antes dos Estados Unidos [4]) com base em uma pessoa, um voto. Todos votavam para eleger uma legislatura que controlaria toda a legislação e aprovaria todas as nomeações de alto escalão. Ele até estendeu a democracia a não cidadãos, como lembra o quaker William Sewell [5], professor da Jen Dah Christian University em Szechuan:

Como membro do sindicato, eu tinha direito a voto. A eleição de um governo na China é indireta. Nós, em Jen Dah, devíamos votar para nosso Congresso do Povo local. Então, os Congressos Locais, dentre seus próprios membros, elegeriam o Congresso Duliang. Destes membros e dos congressos das grandes cidades e de muitos condados seria eleito o Congresso Provincial do Povo de Szechwan. Por fim, emergia o Congresso Nacional do Povo, em que cada membro tinha sido, em primeiro lugar, eleito para um órgão local. O Congresso Nacional faz as leis, elege o Presidente e nomeia o Primeiro Ministro e os membros do Conselho de Estado. Em nosso grupo de química, discutíamos o tipo de homem e mulher que poderia nos representar melhor; então apresentamos meia dúzia de nomes.

Cada grupo em nossa seção em Jen Dah fazia o mesmo. Todos os nomes eram então escritos em um quadro para que todos pudessem ver quem havia sido sugerido. Os nomes que vários grupos tinham listado em comum eram colocados em uma lista menor. Eram mais de uma dúzia, os grupos ainda tinham a liberdade para propor novamente qualquer nome que considerassem que não deveria ter sido omitido. Aqueles cujos nomes estavam na lista curta tinham então que ser persuadidos a aceitar a permanência de seus nomes. Isso levava algum tempo, pois uma sensação genuína de incapacidade de lidar com a situação fazia com que muitos deles relutassem em aceitar um trabalho de tanta responsabilidade. Cada nome era longamente discutido pelo grupo. Os desconhecidos eram convidados a visitar os vários grupos para responderem perguntas. Por fim, obtinha-se uma lista ainda mais curta de candidatos, que acabava sendo ainda mais reduzida, após mais discussão, ao número desejado.


Quando chegava o dia da eleição, as bandeiras tremulavam e as bandas com seus címbalos e tambores em seu ritmo constante tornavam tudo agradavelmente barulhento. Os comprovantes de votação eram entregues em uma extremidade da cabine e os alunos, todos tendo prestado juramento de manter sigilo, ficavam disponíveis para ajudar se você não soubesse ler. Então, sozinho ou acompanhado por seu ajudante, você se sentava à mesa e marcava seus votos. A lista continha nomes que agora tinham ficado muito familiares, mas havia um espaço na parte inferior para nomes a serem adicionados, se assim você o desejasse. Um círculo era desenhado em volta do nome daquele que você desejava que fosse eleito e o papel era colocado na caixa. Na Inglaterra, eu tinha votado em um homem que não conhecia, com quem nunca havia falado e que pediu meu voto por meio de uma carta circular e que havia perdido para seu rival por mais de 14.000 votos. Achava que meu voto era totalmente inútil. Na China, nesta única eleição, tive pelo menos a feliz ilusão de que meu voto tinha um significado real.”


Na década de 1980, o processo eleitoral se deteriorou, poderosos clãs familiares dominaram as eleições locais e os moradores regularmente pediam a Pequim que enviasse "um secretário do Partido capaz para endireitar as coisas". Por essa razão, o governo convidou o Carter Center para supervisionar a votação e, em 2010, o comparecimento dos eleitores à votação ultrapassou os Estados Unidos. O primeiro-ministro encorajou mais experimentos: “a experiência de muitas aldeias provou que os agricultores podem eleger comitês de aldeia com sucesso. Se as pessoas conseguem administrar bem uma aldeia, podem administrar um município e um condado. Devemos encorajar as pessoas a experimentar ousadamente e testar a democracia na prática.”

Cinco anos depois, o presidente Xi pediu ao Carter Center para reavaliar a justiça das leis eleitorais e educar os candidatos em campanhas éticas. “A democracia não é apenas definida pelo direito das pessoas de votar nas eleições, mas também pelo seu direito de participar dos assuntos políticos diariamente. Democracia não é decoração, é para resolver os problemas das pessoas”. Como o capitalismo, a democracia é uma ferramenta na China, não uma religião.

Há seiscentos mil vilarejos e os candidatos bem-sucedidos, que não precisam ser membros do Partido, começam seus mandatos de cinco anos com um ano de experiência. No final do ano, se os representantes da aldeia não cumprirem as promessas, são demitidos. Os bem-sucedidos passam o segundo ano ajustando seus objetivos, sabendo que seus sucessos podem ser propagados por todo o país.


Representantes de vilarejos escolhem colegas para representá-los em nível distrital, onde a votação posterior elege representantes de condados até que, por fim, rês mil congressistas provinciais, todos voluntários, se reúnam em Pequim e se esforcem por consenso tão seriamente quanto fazem em suas vilas. Em Pequim, eles lutam pelo consenso com a mesma intensidade com que o fizeram em suas aldeias. Os parlamentares são voluntários, cidadãos comuns cujo avanço para o nível nacional requer prudência e bom senso.

A votação escalonada torna difícil ingressar em uma assembleia de nível superior sem o apoio dos políticos de baixo e torna impossível para o Partido controlar completamente o processo. Como resultado, um terço dos parlamentares populares nacionais não são membros do Partido Comunista, tampouco os outros partidos são meramente decorativos. Partidos como a Liga Democrática da China [6], o Kuomintang [7] e a Sociedade Jiusan [8] (cujos membros, todos com PhD, fazem campanha por iniciativas climáticas, aumentos nos orçamentos de P&D e políticas de saúde baseadas em dados) regularmente produzem ministros notáveis.

A Constituição da China é democrática?

A Constituição é clara: “O Congresso Nacional do Povo e os congressos da população local em vários níveis são constituídos por meio de eleições democráticas. Eles são responsáveis perante as pessoas e estão sujeitos à sua supervisão. Todos os órgãos administrativos, judiciais e procuradores do Estado são criados pelos Congressos do Povo aos quais devem responder e pelos quais são supervisionados.” A maior parte da legislação recebe 90% de apoio no Congresso, mas isso o torna um mero carimbador das propostas, como afirmam os críticos [9]?


O mal-entendido de 'aprovador automático' surge porque o desenvolvimento de políticas chinesas é administrado por ensaios clínicos randomizados e duplo cegos, chamados de Pontos de Teste (Trial Spots), e o Congresso é o principal responsável por avaliar publicamente os dados neles coletados. A Europa iniciou programas de teste de renda universal, mas a China os faz há trinta anos e tem um sistema maduro para apoiá-lo e gerenciá-lo.

Não é difícil ter apoio de noventa por cento dos parlamentares se os dados são sólidos. As propostas de políticas são testadas primeiro em aldeias, vilas ou cidades e a grande maioria morre durante esta fase pelas mesmas razões que a maioria dos experimentos científicos falham. O processo criou o governo mais confiável do mundo, mas o Congresso não é tarefa fácil. Os congressistas visitam, inspecionam e auditam fluxos de caixa dos Pontos de Teste, calculam a acessibilidade e debatem a escalabilidade e o impacto nacional.


Quando, após trinta anos de estudos de engenharia, o governo apresentou sua proposta para financiar a Barragem das Três Gargantas, o Congresso não a aprovou. O custo e a escala do projeto estavam além da imaginação da maioria dos membros, engenheiros aposentados e especialistas estrangeiros o condenaram e um milhão de pessoas que seriam deslocadas criticaram o projeto com tanta veemência que os legisladores exigiram que uma barragem semelhante fosse construída nas proximidades para demonstrar a estabilidade geológica. O governo construiu devidamente a barragem de Gezhouba rio abaixo, mas quando reapresentou o pedido de financiamento, apenas sessenta e quatro por cento dos delegados apoiaram e, quando o governo decidiu prosseguir, as pessoas acusaram ruidosamente de ‘forçar a aprovação do projeto de lei’.

Embora o processo da China não seja totalmente científico nem totalmente democrático, rotulá-lo de 'autoritário' - um conceito ocidental - também não acerta o alvo. A confiança da China em dados para correções de curso é sua maior força, embora mesmo dados sólidos não garantam uma navegação tranquila. Cinquenta por cento da legislação [10] não é aprovada dentro do período planejado e dez por cento leva mais de uma década, graças ao Congresso Consultivo do Povo, um lobby gigantesco de grupos de interesses especiais - incluindo camponeses, indígenas, professores, pescadores, fabricantes e taiwaneses do Partido Kuomintang - que garante que a legislação pendente não prejudique seus interesses. Os legisladores devem usar os dados dos testes e as compensações políticas para elaborar as leis que, quando surgirem, terão apoio quase unânime [11]. Mesmo assim, a legislação é aprovada 'sujeita a revisão' porque a coleta de dados também continua após a implementação.


O Congresso encomendou o Ponto de Teste do trem de alta velocidade Guangzhou-Shenzhen em 1998, antes de votar para financiar a enorme rede HSR de hoje. Em 2016, o governo avançou com a legislação permitindo culturas de alimentos geneticamente modificados porque havia prometido que o milho e a soja geneticamente modificados estariam em uso comercial em 2020. Dois anos depois - após uma intensa campanha de educação pública - uma pesquisa [12] revelou que metade do país ainda se opunha a produtos GM, dez por cento eram favoráveis e onze por cento consideravam a modificação genética GM 'uma arma de bioterrorismo apontada para a China'. A legislação foi arquivada. O capitalista de risco Robin Daverman descreve o processo em nível nacional:

A China é um portfólio gigante de testes, com milhões deles acontecendo em todos os lugares. Hoje, inovações em tudo, desde saúde até redução da pobreza, educação, energia, comércio e transporte, estão sendo testadas em diferentes comunidades. Cada uma das 662 cidades da China está experimentando: Xangai com zonas de livre comércio, Guizhou com redução da pobreza, 23 cidades com reformas educacionais, províncias do Nordeste com reforma do Estado: escolas-piloto, cidades-piloto, hospitais-piloto, mercados-piloto, tudo piloto. Prefeitos e governadores, os investigadores primários, compartilham seus ‘resultados de laboratório’ na Escola Central do Partido e os publicam em suas ‘revistas científicas’, os jornais estatais.


Começando em cidades pequenas, as principais políticas passam por ‘ensaios clínicos’ que geram e analisam dados de teste. Se as estatísticas parecerem boas, eles adicionarão outros locais de teste e farão acompanhamentos de longo prazo. Eles testam e ajustam por 10-30 anos e depois pedem ao Congresso do Povo de 3.000 membros para revisar os dados e autorizar testes nacionais em três províncias principais. Se um teste nacional for bem-sucedido, o Conselho de Estado [o Brains Trust] aperfeiçoa o plano e o leva de volta ao Congresso para uma votação final. É muito transparente e, se seus dados forem melhores que os meus, seu projetos será aprovado e o meu, não. Os votos do Congresso são quase unânimes porque a legislação é respaldada por uma pilha de dados. Isso permite que a China realize muito em um curto espaço de tempo, porque sua solução vencedora será rapidamente propagada por todo o país, você será um herói de primeira página, convidado para reuniões de alto nível em Pequim e promovido. Como você pode imaginar, a competição para resolver problemas é intensa. O governo local tem muita liberdade para tentar suas próprias coisas, contanto que tenha o apoio da população local. Tudo, do liberalismo implacável ao comunismo puro, foi tentado por várias aldeias e pequenas cidades.”


Yiwu, uma cidade adormecida no meio da província de Zhejiang, iniciou um Ponto de Teste de comércio internacional na década de 1980 e se tornou o centro mundial de pequenas mercadorias, como bichos de pelúcia (e tema de inúmeros livros e artigos). Hoje, os municípios estão realizando pontos de teste em cidades inteligentes, as escolas organizaram pontos de teste na qualidade acadêmica, sindicatos trabalhistas geriram pontos de julgamento de direitos trabalhistas, empresas estatais experimentaram indenizações mistas (dinheiro e ações) e funcionários independentes experimentaram ideias sabendo que qualquer dano seria contido e os sucessos rapidamente replicados. Até mesmo a alfândega chinesa conservadora tinha "Pontos de Teste de facilitação de comércio" nas passagens de fronteira.

E m 2019, o Ministério da Saúde em Pequim pediu a trinta e três ministros provinciais de saúde - todos PhDs e Médicos - para controlar a obesidade infantil até 2030. Os ministros perguntaram a dez mil Diretores de Saúde do Condado e hoje centenas de Pontos de Testes de Conscientização sobre a Obesidade Infantil estão funcionando em cidades e distritos em todo o país. Um outdoor avisa, de modo bastante duvidoso, que a obesidade reduz a inteligência das crianças, mas o trigo e o joio serão separados até 2030 e as crianças com excesso de peso se tornarão tão raras quanto eram quando éramos jovens. No geral, o processo mantém o governo em sincronia com os desejos das pessoas melhor do que qualquer outro na terra:


A cada cinco anos desde 1950, os planejadores reajustam o curso da nação em direção ao objetivo final do país de dàtóng [Grande Unidade], emitem relatórios de progresso e coletam feedback. Os resultados os encorajaram a permitir que os empresários competissem em setores não essenciais, como a fabricação de automóveis, mas mostraram que os lucros em serviços essenciais eram tão onerosos quanto os impostos. Lucrar com a saúde, eles descobriram, tributava todas as empresas que precisam de trabalhadores saudáveis, e os lucros da educação tributavam todas as empresas que precisam de trabalhadores alfabetizados. O governo agora os fornece a preço de custo e até apoia corporações deficitárias ('zumbis' para neoliberais) que servem a um propósito social.


Os planos quinquenais da China são democráticos?

Os pesquisadores começam os Planos Quinquenais com questionários e fóruns nas bases e, após as avaliações intermediárias, o Congresso comissiona acadêmicos para avaliar e economistas para fazer orçamentos de suas recomendações. Em seguida, as equipes percorrem o país, aparecem na TV local, ouvem as opiniões locais e formulam propostas. Um planejador [13] explicou: “os computadores fizeram grandes melhorias na coleta e análise de informações, mas ainda assim, milhares de estatísticos, atuários, especialistas em banco de dados e técnicos com formação em planejamento urbano, rural, agrícola, ambiental e econômico investem milhares de horas interpretando e analisar este vasto tesouro de dados, estatísticas e informações. Desnecessário dizer que para um país do tamanho de um continente com mais de um bilhão de cidadãos, são necessárias centenas de milhares de pessoas para desenvolver cada Plano Quinquenal”.


Em seguida, o Conselho de Estado publica um anteprojeto e solicita contribuições de trabalhadores, agricultores, empresários, empresários, funcionários públicos e especialistas e relatórios de viabilidade de todos os 27 níveis da burocracia responsáveis por implementá-lo. O Comitê de Finanças e Economia analisa o orçamento do Plano e, após a aprovação do Conselho de Estado e do Politburo, vota o Congresso. Em seguida, a discussão é suspensa e a implementação prossegue sem impedimentos.


Ao longo dos cinco anos, o crescimento econômico foi em média de 7,8%, os serviços se tornaram o maior setor e o consumo tornou-se o principal motor do crescimento, a intensidade de energia caiu 18% e as emissões caíram 12%, a diferença de renda urbano-rural diminuiu, o seguro de saúde rudimentar tornou-se universal, 300 milhões de pessoas tiveram acesso à água potável segura e cem milhões foram retiradas da pobreza. Tony Saich, de Harvard, que realiza suas próprias pesquisas, conclui que 90% das pessoas estão satisfeitas com o governo e pesquisas descobriram que 83% acham que ele dirige o país em benefício de todos, em vez de para grupos especiais. Mais notavelmente, isso é executado com parcimônia:


A administração atual prometeu estender o Estado democrático de direito à medida que os níveis de educação aumentam, mas há outra democracia menos forma em ação há três mil anos. Qualquer cidadão pode fazer uma petição ao governo com uma demanda ou reclamação. Historicamente, a qualquer momento, mas especialmente agora, quando o Congresso está reunido com o Congresso Consultivo dos Povos, milhares de eleitores insistentes aparecem em suas portas com petições escritas. O protocolo exige que eles comecem no nível do bairro, então, se ainda estiverem insatisfeitos, vão para o próximo nível, até o Congresso Nacional do Povo, se necessário. Na verdade, há um escritório especial, o Departamento de Estado de Cartas e Chamadas, onde todos, mesmo não cidadãos, podem apresentar petições.

A legislação, que já foi publicada em jornais e postada em boletins do bairro, agora floresce online. Todos os rascunhos são publicados para cidadãos, não cidadãos, empresas nacionais e internacionais para comentar e criticar — e eles o fazem. Se houver forte rejeição ou resistência às leis propostas, elas são enviadas de volta para serem emendadas. E se isso for muito complicado, há o direito constitucional de se manifestar publicamente.

Hoje, smartphones, mídia social e streaming de vídeo para multiplicar os efeitos das manifestações públicas (como testemunham 150.000 "incidentes em massa" em 2018). Protestos barulhentos - geralmente desencadeados pela injustiça, desonestidade ou incompetência das autoridades locais - são baratos, emocionantes e seguros, uma vez que a polícia não anda armada. Cidadãos indignados [14] pintam cartazes, alertam ONGs e a mídia, recrutam vizinhos, batem tambores, gritam slogans e transmitem sua manifestação ao vivo.


As respostas que antes demoravam meses, agora levam horas. Funcionários alvo - geralmente após um telefonema de um superior furioso - vão rapidamente à cena, curvam-se profundamente, pedem desculpas profusamente, beijam bebês, explicam que não tinham ideia de que tais coisas estavam acontecendo e prometem amanhãs mais brilhantes. Desde que os telefones celulares se tornaram onipresentes, a aprovação das autoridades locais aumentou de quarenta e cinco para cinquenta e cinco por cento e, em 2025, deve rivalizar com os setenta por cento dos americanos.

Da redistribuição de terras na década de 1950 às comunas nos anos 60 ao Grande Salto Adiante, a Revolução Cultural, Reforma e Abertura e Anticorrupção, a política chinesa é quase irreconhecível de uma década para a outra, mas o apoio político rivaliza com o da Suíça. O professor de Tsinghua Daniel Bell [15] credita à democracia na base, aosexperimentos no meio e à meritocracia no topo pela série de sucessos políticos. E Tom Friedman, do The New York Times, diz melancolicamente: "Se pudéssemos ser a China por um dia, poderíamos realmente tomar as decisões certas."

O ex-presidente Hu Jintao, que formalizou os Pontos de Testes, sabiamente observou que há mais ingredientes no processo democrático da China do que nossa vista consegue alcançar: "tirar de cada um de acordo com sua habilidade e dar a cada um de acordo com sua necessidade requer estado democrático de direito, equidade e justiça, honestidade e fraternidade, energia abundante, estabilidade, ordem, harmonia entre as pessoas e o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável".

 

 ALGUNS GRÁFICOS DO ARTIGO:

Legenda do gráfico: percentual de pessoas que respondeu afirmativamente à questão se o governo trabalha para o benefício de todos.

 


Legenda do gráfico: A pergunta é se acham que seu país está indo na direção correta. A barra da esquerda representa o percentual que acha que sim. E a barra da direita o oposto.


Fonte:

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Poder-e-ContraPoder/Quao-democratica-e-a-China-/55/50055

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS :
[1] O discípulo mais famoso de Confúcio, Mêncio, viveu entre 372 a.C. e 289 a.C.

[2] Número recorde de pessoas coloca o governo como o problema mais importante. Gallup em 18 de fevereiro de 2019

[3] The “Surprise” of Authoritarian Resilience in China, Wenfang Tang

[4] A Lei dos Direitos de Voto de 1965

[5] William Sewell, “I Stayed in China” [Eu Fiquei na China].

[6] A Liga Democrática da China [China Democratic League] é para professores do ensino fundamental às universidades. Como Confúcio é o professor arquetípico da China e os professores são mantidos em alta consideração pela sociedade como um todo, este é um partido altamente influente.

[7] O Kuomintang da China, KMT; (às vezes Guomindang, muitas vezes traduzido como o Partido Nacionalista da China) é um grande partido político da República da China em Taiwan, com sede em Taipei e atualmente é o partido político de oposição no Yuan Legislativo de Taiwan.

[8] A Sociedade Jiusan [Jiusan Society ] é para cientistas com PhD, principalmente físicos e engenheiros, cuja posição é "tudo deve ser executado pela ciência". Muito forte em pressionar por iniciativas climáticas, proteção ambiental, mais orçamento para P&D, melhores políticas de saúde, etc.

[9] Wikipédia

[10] “Authoritarian Gridlock? Understanding Delay in the Chinese Legislative System”, Rory Truex. Journal of Comparative Political Studies, April 2018 [Impasse autoritário? Entendendo o atraso no sistema legislativo chinês. Rory Truex. Revista de Estudos Políticos Comparativos, abril de 2018]

[11] O menor apoio legislativo registrado é de 64% para o projeto da Represa dos Três Desfiladeiros, que agora devolve seu investimento original a cada dois anos. Foi o maior e mais caro projeto de um único local da história cujo lago mudou a rotação da Terra, então a cautela dos legisladores em sua geração é compreensível.

[12] “Public perception of genetically-modified (GM) food: A Nationwide Chinese Consumer Study. “ [Percepção pública dos alimentos geneticamente modificados (GM): Um estudo nacional do consumidor chinês] Kai Cui & Sharon P. Shoemaker. npj Ciência da Alimentação volume 2, número do artigo: 10 (2018)

[13] Jeff J. Brown, China Rising.

[14] Tang, Autoritarismo Populista.

[15] “The China Model: Political Meritocracy and the Limits of Democracy” [O Modelo da China: Meritocracia Política e os Limites da Democracia]. (p. 9) Daniel Bell

*Publicado originalmente por Information Clearing House | Tradução por César Locatelli