sábado, 30 de janeiro de 2021

SAMIR AMIN – O intelectual das Relações Centro Periferia.

 

SAMIR AMIN – O intelectual das Relações Centro Periferia.


Notas sobre o livro “Somente os povos fazem sua própria história” (Expressão Popular, 2020). Este livro é uma coletânea de artigos de Samir Amin escritos entre os anos 2000 e 2018 , analisando suas teses sobre as relações entre Centro e Periferia e de como se libertar do imperialismo globalizante, que impede o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Resumimos a seguir suas principais teses.


SAMIR AMIN (1931-2018) foi um dos mais importantes intelectuais marxistas do século XX, destacou-se por suas importantes contribuições à teoria do sistema mundo e sobre os mecanismos de dominação e dependência das relações centro-periferia do capitalismo. Filho de pai egípcio e mãe francesa, sua enorme tese de doutorado de 629 páginas à Universidade de Paris em 1957 foi publicada mais tarde em dois volumes (edição francesa de 1970 e edição inglesa de 1974), chamava-se “Acumulação em escala mundial”. Também apareceram na década de 60 e início da seguinte, os grandes teóricos da teoria da dependência – Theotônio dos Santos, Celso Furtado, Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank e outros. Amin também admirava o grande clássico da Economia Política Marxista, o Capitalismo Monopolista, de Paul Baran e Paul Sweezy, lançado em 1966. Neste ambiente, formava-se o centro do novo pensamento marxista em todo o mundo, como poderosa ferramenta de análise da anatomia do imperialismo. Seu livro citado acima aplica as categorias básicas do livro O Capital de K. Marx para o estudo do modo capitalista à medida que ele se espalhava globalmente por meio do colonialismo, colocando no lugar estruturas de exploração e acumulação que deveriam superar em muito a era colonial, analisando as mudanças estruturais que o próprio modo capitalista sofre na era do Império e do capital monopolista, para se tornar um sistema mundial de exploração entre classes e nações do mundo.


A INTRODUÇÃO DE AIJAZ AHMAD , filósofo e marxista indiano, que faz breve relato biográfico e de idéias do autor…. Ahmad diz que Samir Amin descobriu uma contradição fundametal que afeta o sistema imperialista : os EUA conseguiram uma extraordinária unidade estrutural que une Estados e populações no centro imperial, mas para a periferia do sistema não existe nenhum sistema estável de governança ou de integração social……

SAMIR escreveu: “Até hoje o imperialismo nunca encontrou os termos do compromisso social e político que poderia permitir um sistema de regras para estabilizar em seu favor nos países da periferia capitalista. Eu interpreto esse fracasso como prova de uma situação objetiva na periferia que é potencialmente revolucionária e sempre explosiva e instável.”

Quem então fará a revoluçao ? Amin não oferece um modelo em linha reta da marcha. Amin ofereceu duas propostas : que a revolução deveria ser tanto nacional quanto socialista….. ou não seria, uma vez que a burguesia tornou-se completamente compradora e reacionária… e que no início do processo haveria necessidade de uma fase inicial pré-comunista do “socialismo”…. Essa fase parece estar mais relacionada ao MARXISMO ORIENTAL do que ao MARXISMO OCIDENTAL….parte das concepções originais de Mao Tsé Tung….. a idéia de uma fase pré-socialista parece ter sido pressuposta na percepção de que as forças produtivas na periferia estavam muito subdesenvolvidas para serem proveitosamente socializadas…. Esse atraso das forças produtivas disponíveis era afinal um elemento significativo nas distorções que inevitavelmente se seguiram em todas experiências socialistas do século XX…… Assim, a seu ver, a China era o único país no Tricontinente (periferia) e de fato no mundo que havia definido para si mesmo um projeto de soberania contra a hegemonia estadunidense, o qual estava buscando em um formato histórico inteiramente novo. …. ele não via a China como país capitalista, mas em transição….. a China avançando rapidamente no desenvolvimento de suas forças produtivas ainda tinha a chance de superar o capitalismo em direção de um socialismo renovado…..este modelo poderia servir de exemplo para outros países periféricos…. Mas mesmo assim ainda seria muito difícil…. Lembrando que a China não é um estado burguês normal….


EUROCENTRISMO X MARXISMO TERCEIRO MUNDISTA.

Nos países do pós-guerra onde o “socialismo realmente existente” prevaleceu, como o sistema soviético, marcou presença marcante nas grandes realizações do século XX. Sem o “perigo” que o modelo comunista representava, a social-democracia ocidental nunca teria sido capaz de impor o Estado do bem estar social. …. o sistema soviético, no entanto, não conseguiu passar para uma nova etapa de acumulação intensiva; portanto, ficou de fora da nova revolução industrial (informatizada) com a qual o século XX terminou. … as razões para isso são complexas, mas uma delas foi o deslocamento antidemocrático do poder soviético….a democratização da economia e da sociedade poderia permitir ultrapassar os limites da estrutura capitalista e permitir a transição em direção ao socialismo….. o socialismo será democrático ou não poderá existir : esta é a lição dessa primeira experiência de rompimento com o capitalismo.

Na periferia do sistema, a partir dos anos 60 e 70 há uma evolução e crescimento do pensamento social critico…. Houve uma explosão brilhante na crítica do “socialismo realmente existente”…. No centro dessa crítica estava uma nova concepção da polarização criada pela expansão global do capital, que havia sido subestimada….. essas críticas, tanto do “socialismo realmente existente”, do pensamento global que legitimou sua expansão e das críticas socialistas teórica e prática – estava no centro da entrada ofuscante da periferia no pensamento moderno….ESSA CRÍTICA REAVIVOU O DEBATE SOBRE O MARXISMO, ENTENDENDO DESDE O INÍCIO A NECESSIDADE DE TRANSCENDER OS LIMITES DO EUROCENTRISMO QUE DOMINAVA O PENSAMENTO MODERNO….. assim o Marxismo Ocidental pode ser questionado e não serviria mais para as periferias e o Terceiro Mundo…. Começou-se a valorizar o Marxismo Oriental, a partir das idéias de Mao Zedong….. as prioridades das periferias são diferentes das prioridades do centro desenvolvido do capitalismo…. Os intelectuais marxistas das periferias dão prioridade às lutas anti-coloniais e anti-imperialistas…. Estado, nação e povo são palavras-chaves…..

E se a esquerda européia puder se libertar da submissão aos ditames duplos do capital e de Washington, seria possível imaginar que a nova estratégia européia poderia estar interligada com a da Rússia, China, Índia e do Terceiro Mundo em geral em um necessário esforço de construção multipolar. Se isso não acontecer, o projeto europeu em si vai desaparecer.


GLOBALIZAÇÃO E CRISE DO SISTEMA CAPITALISTA

As promessas do liberalismo globalizado (final séc. XIX) pareciam estar sendo realizadas durante a belle époque. Depois das crises de 1873 e 1896, o crescimento recomeçou nas novas bases da Segunda Revolução Industrial, oligopólios e globalização financeira. O triunfo da belle époque não durou duas décadas. Alguns jovens da época (Lênin por exemplo) previram sua queda, mas ninguém os ouviu. O liberalismo ou a utopia individualista do “livre mercado” não poderia reduzir a intensidade das contradições de todo tipo que o sistema carrega dentro de si. Ao contrário, aguçou-as. A globalização liberal poderia apenas engendrar a militarização do sistema nas relações entre os poderes imperialistas da época, trazendo uma guerra que em suas formas frias e quentes durou pouco mais de 30 anos - de 1914 a 1945. Nas periferias o colapso dos mitos da belle époque desencadeou uma radicalização anti-imperialista. Alguns países da América Latina inventaram o nacionalismo populista em uma variedade de formas (México – revolução de 1910; Argentina – peronismo na década de 1940; China 1911 guerra civil entre nacionalistas e comunistas). A União Soviética inventou uma nova trajetória com industrialização extensiva acelerada. Mesmo com o poder dos sovietes esvaziado, o sistema soviético era eficiente: industrializou o país e construiu uma força militar que seria a primeira capaz de enfrentar o desafio do adversário capitalista, derrotando a Alemanha nazista e pondo fim ao monopólio estadunidense em armas atômicas e mísseis balísticos.

A Segunda Guerra Mundial inaugurou uma nova fase no sistema mundial. O arranque do período pós-guerra (1945-1975) foi baseado no Estado do bem estar social, eficiência da produção de sistemas nacionais interdependentes, construção de uma burguesia nacional na periferia do sistema e no projeto de estilo soviético, gozando de relativa autonomia ao sistema dominante. A dupla derrota do fascismo e do antigo sistema colonial, permitiu às classes populares impor formas variadas de contestação que o próprio capital foi forçado a se ajustar. O arranque do pós-guerra permitiu massivas transformações econômicas, políticas e sociais em todas as regiões do mundo. Essas transformações foram o produto de regulamentações sociais impostas ao capital pelas classes operárias e populares. Elas não foram produto (e aqui a ideologia liberal é comprovadamente falsa) de uma lógica de expansão do mercado. Essas transformações foram tão grandes, que apesar do processo de desintegração social a que estamos sujeitos atualmente, elas definiram uma nova estrutura para os desafios que confrontam os povos do mundo agora, no limiar do séc. XXI. A antiga polarização entre nações do centro e periferia, baseadas em nações industrializadas e não industrializadas; foram revistas. Uma nova forma de polarização ficou clara, constituindo-se os “cinco novos monopólios” que beneficiaram os países da tríade dominante : 1) o controle da tecnologia; 2) fluxos financeiros globais (por meios de bancos, cartéis de seguros e fundos de pensão do centro); 3) acesso aos recursos naturais do planeta; 4) acesso a mídia e comunicações; e 5) armas de destruição em massa. São essas circunstâncias que cancelam a extensão da industrialização nas periferias, desvalorizam o trabalho produtivo incorporado nesses produtos e supervalorizam o suposto valor agregado a essas atividades por meio das quais os novos monopólios operam em benefício dos centros. Elas produzem uma nova hierarquia na distribuição de renda em escala mundial, mais desigual do que nunca, enquanto produzem subalternos das indústrias periféricas.

A polarização encontra sua nova base, que produz resultados desiguais. Hoje, podemos diferenciar dois tipos na periferia: periferias da linha de frente, com sistemas nacionais autônomos e independentes do capitalismo globalizado e as periferias marginalizadas, que não foram tão bem sucedidas. No primeiro tipo são claramente os casos da China e da Coreia e em menor grau outros países do sudeste asiático, Índia e alguns países da América Latina… esses projetos são confrontados pelo imperialismo globalmente dominante; o resultado desse confronto contribuirá para o formato do mundo de amanhã. Por outro lado, as periferias marginalizadas não tem nem projeto nem estratégia própria.. Círculos imperialistas “pensam por elas” e tomam iniciativa na elaboração de “projetos” relativos a essas regiões.. Nenhuma força local oferece qualquer oposição. Esses países são, portanto, sujeitos passivos da globalização.


A NOVA QUESTÃO TRABALHISTA

As classes populares correspondem a três quartos da população urbana mundial, enquanto a subcategoria precarizados representam dois terços das classes populares em escala mundial (cerca de 40% das classes populares nos centros e 80% nas periferias estão na subcategoria precarizados). Em outras palavras, as classes populares precarizadas representam (pelo menos) metade da população urbana mundial e muito mais que isso nas periferias.

Há meio século, a composição das classes populares era bem diferente. Na época a participação do Terceiro Mundo não excedia metade da população urbana global. Hoje, representam dois terços. Megacidades como as que conhecemos hoje não existiam. Havia apenas algumas grandes cidades (China, Índia e América Latina).

A principal transformação social ocorrida na segunda metade do séc. XX pode ser resumida com uma única estatística : a proporção das classes populares precarizadas subiu de menos de um quarto (¼) para mais da metade da população urbana global…. E esse fenômeno de pauperização reapareceu em escala significativa nos próprios centros desenvolvidos.

Pauperização - não há melhor termo para nomear a tendência evolucionária durante a segunda metade do século XX.

Camadas médias, camadas populares estabilizadas e camadas populares precarizadas estão todas integradas no mesmo sistema de produção social, mas cumprem funções distintas dentro dele. Alguns são de fato excluídos dos benefícios da prosperidade. Os excluídos são definitivamente uma parte integrante do sistema, não estão marginalizados, no sentido de não estarem integrados funcionalmente ao sistema.

A pauperização é um fenômeno moderno…. É a modernização da pobreza e tem efeitos devastadores em todas as dimensões da vida social. … Emigrandes do campo foram relativamente bem integrados nas classes populares estabilizadas durante os anos de ouro (1945-1975). ….. Agora, aqueles que chegaram recentemente com seus filhos situam-se à margem dos principais sistemas produtivos, criando condições favoráveis para a substituição da solidariedade comunitária pela consciência de classe.

Quanto à democracia, sua credibilidade e portanto sua legitimidade é minada por sua incapacidade de reduzir a degradação das condições de uma fração crescente das classes populares.

A pauperização é um fenômeno inseparável da polarização em escala mundial – um produto inerente à expansão do capitalismo realmente existente, que por isso devemos chamar de imperialista por natureza.

A submissão das sociedades do Terceiro Mundo às demandas de expansão do mercado capitalista sustenta novas formas de polarização social que excluem uma proporção crescente de agricultores do acesso ao uso da terra. Esses camponeses que foram empobrecidos ou se tornaram sem terra alimentam a migração para as favelas. Esses fenômenos são destinados a ficar ainda piores enquanto os dogmas liberais não forem desafiados e nenhuma política corretiva dentro dessa estrutura liberal pode evitar sua propagação.


O CAPITALISMO MONOPOLISTA GENERALIZADO

Lênin descreveu o imperialismo dos monopólios como “o estágio superior do capitalismo”. Eu descrevi o imperialismo como uma “fase permanente do capitalismo”, no sentido de que o capitalismo histórico globalizado construiu, e nunca deixou de reproduzir e aprofundar, a polarização centro/periferia. A primeira onda de construção dos monopólios no final do séc. XIX certamente significou transformações qualitativas na estrutura do modo de produção capitalista. A segunda onda de centralização do capital ocorreu no último terço do século XX, também é uma segunda transformação qualitativa do sistema que Samir Amin descreve como “MONOPÓLIOS GENERALIZADOS”. Nesta segunda onda, os monopólios não só comandam o topo da economia moderna, mas também conseguiram impor seu controle direto sobre todo o sistema de produção.

Nesta fase superior da centralização do capital, seu laço com um corpo orgânico vivo – a burguesia – se rompeu. A burguesia histórica, constituídas por famílias enraizadas localmente, deu lugar a uma oligarquia/plutocracia anônima que controla os monopólios, apesar da dispersão dos títulos de propriedade de seu capital. A gama de operações financeiras inventada nas últimas décadas testemunha essa forma suprema de alienação : o especulador agora pode vender o que ele nem possui, de modo que o princípio da propriedade fica reduzido a um status que é pouco menos que irrisório. A função do trabalho socialmente produtivo desapareceu. O alto grau de alienação já havia atribuído uma virtude produtiva ao dinheiro (“dinheiro produz dinheiro”) . Agora a alienação atingiu novos patamares : é o tempo (“tempo é dinheiro”) , que apenas por sua virtude, “produz lucro”. A nova classe burguesa que responde aos requisitos de reprodução do sistema foi reduzida ao status de “empregados assalariados” (precários, para começar), mesmo quando são, como membros dos setores mais altos das classes médias, pessoas privilegiadas e muito bem pagas pelo seu “trabalho”.

Sendo assim, não devemos concluir que o capitalismo já teve apogeu ? Não há outra resposta possível para o desafio: os monopólios devem ser nacionalizados. Este é o primeiro passo inevitável rumo a uma possível socialização de sua gestão pelos trabalhadores e cidadãos. Somente isso permitirá progredir ao longo do grande caminho para o socialismo. Se isso não for feito, a lógica de dominação do capital abstrato produzirá apenas o declínio da democracia e da civilização rumo a um “apartheid generalizado” em âmbito global.


O MARXISMO ORIENTAL OFERECE UMA SAÍDA

(no livro “A trajetória do capitalismo histórico e a vocação tricontinental do marxismo”, 2011).

Considerando que o Marxismo Ocidental abandonou a perspectiva socialista e se uniram à social democracia liberal burguesa e agora se comprometem com estudos acadêmicos sem impacto político e acreditam que um “outro mundo” é possível, sem conflitos e sem guerras, a saída vem pelo Marxismo Oriental….. Mudar o mundo, agora, significa mudar as condições de vida de 80% da população mundial. O Marxismo Ocidental tem ignorado a transformação decisiva representada pela emergência do capitalismo monopolista generalizado. Enquanto que eles imaginam um impossível “outro capitalismo” com “face humana”, em contrapartida Mao apresenta uma visão que era profundamente revolucionária e realista (científica, lúcida), distinguindo e conectando três dimensões da realidade: povos, nações, Estados.

-----O povo (classes populares) quer a revolução e é possível construir um bloco hegemônico que reúna as diferentes classes populares, dominadas e exploradas, oposta àquela que permite a reprodução do sistema de domínio do capitalismo imperialista.

-----A menção às nações refere-se ao fato de que a dominação imperialista nega a dignidade das “nações” forjada pela história das sociedades das periferias. Tal dominação destruiu sistematicamente tudo o que dá às nações sua originalidade – em nome da “ocidentalização” e a proliferação de lixo barato. A libertação do povo portanto é inseparável daquela das nações às quais ele pertence. ….. NÃO É RESTAURAÇÃO DO PASSADO….. MAS INVENÇÃO DO FUTURO…. Isso se baseia na transformação radical do patrimônio histórico da nação, em vez da importação artificial de uma falsa “modernidade”.

------A referência ao Estado é baseado no reconhecimento necessário da relativa autonomia de seu poder em suas relações com o bloco hegemônico que é a base de sua legitimidade. Essa autonomia relativa não pode ser ignorada enquanto o Estado existir, ou seja pelo menos por toda a duração da transição para o comunismo. É só depois disso que podemos pensar em uma “sociedade sem Estado”. Isso não é apenas porque os avanços populares e nacionais devem ser protegidos da agressão permanente do imperialismo, mas também porque avançar rumo à longa transição, também requer “desenvolvimento das forças produtivas”. MAS ISSO NÃO É DETERMINISMO – ou seja esperar que o desenvolvimento das forças produtivas leve necessariamente ao socialismo. Na verdade, essas forças devem ser desenvolvidas desde o início com a perspectiva de construção do socialismo.

------A articulação correta da realidade nesses três níveis – povos, nações e Estados – condiciona o sucesso do progresso no longo caminho da transição. É uma questão de reforçar a complementariedade dos avanços do povo, da libertação da nação e das realizações do poder do Estado.


CHINA 2013. A China é capitalista ou socialista? (o falso debate).

Esse falso debate nunca me convenceu. Algumas pessoas argumentam que a China escolheu de uma vez por todas “a via capitalista”. Essas pessoas esperam pelo “retorno à normalidade” (o capitalismo como “fim da história” e o desenvolvimento em direção à democracia no estilo ocidental (partidos múltiplos, eleições, direitos humanos). Eles precisam acreditar que a China recupere seu atraso em relação ao Ocidente, até mesmo a esquerda ocidental. Outros acham que o socialismo foi traído. A pergunta “A China é capitalista ou socialista?” é mal colocada, muito geral e abstrata para que qualquer resposta faça sentido em termos dessa alternativa absoluta. De fato a China tem seguido um caminho original desde 1950 ou até mesmo desde a Revolução de Taiping no século XIX. Vamos tentar resumir os pontos principais deste capítulo.

------ A questão agrária. Mao sempre definiu a revolução realizada na China como anti-imperialista e anti-feudal e que a primeira fase seria um longo caminho para o socialismo. As terras distribuídas (agrícolas) não foram privatizadas; permaneceram como propriedade da nação representada pelas comunas rurais e apenas seu uso foi dado às famílias rurais. Não foi assim na Rússia, Lênin reconheceu a propriedade privada das terras. Repete-se que os camponeses de todo mundo querem a propriedade privada, mas se fosse assim a decisão de nacionalizar as terras teria levado à uma guerra camponesa sem fim como foi o caso quando Stalin começou a coletivização forçada na URSS. A revolução maoísta parte do princípio que a terra agricultável não é mercadoria. Essa “especificidade chinesa” nos previne em absoluto de caracterizar a China contemporânea de “capitalista”, uma vez que a via capitalista é baseada na transformação da terra em mercadoria.

------Capitalismo de Estado chinês. O regime de capitalismo de Estado é inevitável em toda parte, como primeira etapa necessária de qualquer sociedade para se libertar do capitalismo histórico e caminhar rumo ao longo caminho para o socialismo. Mas não há apenas um tipo de capitalismo de Estado, mas muitos diferentes. O capitalismo europeu não teria sucesso se não fosse o Estado. O capitalismo de Estado chinês alcançou resultados incríveis: construiu um sistema produtivo moderno, soberano e integrado, na escala deste país gigantesco, só comparável aos EUA; conseguiu deixar pra trás a forte dependência tecnológica desenvolvendo sua capacidade de produzir invenções tecnológicas; o planejamento dos Planos Quinquenais foram seguidos à risca (natureza e localização de novos estabelecimentos, objetivos de produção e preços); desenvolvimento acelerado pela “abertura” à iniciativa privada a partir de 1980 (era necessária para evitar a estagnação que foi fatal para a URSS); o “socialismo do mercado” ou melhor ainda o “socialismo com o mercado” foi amplamente justificado. Em apenas algumas décadas, a China construiu uma urbanização produtiva e industrial que reúne 600 milhões de pessoas. Isso se deve ao Plano e não ao mercado. China agora tem um sistema produtivo verdadeiramente soberano, nenhum outro país do Sul (exceto Coréia e Taiwan) teve êxito em fazer isso. Paralelamente ao desenvolvimento econômico, o Estado implementou uma dimensão social aos projetos, em resposta aos movimentos sociais: erradicação do analfabetismo, cuidados básicos de saúde para todos, educação universal, moradia popular para 400 milhões de novos habitantes urbanos, rede inédita de estradas, rodovias e ferrovias, represas e usinas de energia elétrica, eliminação da pobreza, etc.etc.etc. Certamente há quarteirões “chiques” e outros que não são nada opulentos, mas NÃO HÁ FAVELAS, que continuaram a se expandir em todas as outras cidades do Terceiro Mundo.

------A integração da China à globalização. Dizer que o sucesso da China se deve ao abandono do maoísmo e à abertura ao capital estrangeiro é simplesmente absurda. A Índia também fez isso e continua um país dependente….O sucesso chinês é 90% atribuível ao projeto soberano chinês. A abertura ao capital estrangeiro cumpriu suas funções úteis: aumentou a importação das tecnologias modernas. No entanto, por causa de seus métodos de parceria, a China absorveu essas tecnologias e agora domina seu desenvolvimento. Não há nada parecido em outros lugares, mesmo na Índia ou no Brasil e outros lugares. Outro detalhe importante: a integração da China à globalização permaneceu parcial e controlada : a China permaneceu fora da globalização financeira. Seu sistema bancário é completamente público e focado no mercado de crédito interno do país. O yuan não está sujeito aos caprichos dos câmbios flexíveis que a globalização financeira impõe. Pequim pode dizer a Washington: “o yuan é o nosso dinheiro e o seu problema”, como Washington disse aos europeus em 1971, “o dólar é o nosso dinheiro e o seu problema”.

-------China, uma potência emergente. Se a China é de fato uma potência emergente, é precisamente porque não escolheu o caminho capitalista de desenvolvimento pura e simplesmente. Os povos não podem pular a sequência necessária de etapas e que a China deve passar por um desenvolvimento capitalista antes que um possível futuro socialista seja considerado. O primeiro Marx estava certo. Mao entendeu melhor do que Lênin que o caminho capitalista não levaria a nada e que o renascimento da China só poderia ser obra dos comunistas. Essa polarização elimina a possibilidade de um país da periferia “sair do atraso” no contexto do capitalismo.. Conclusão: se sair do atraso em relação aos países opulentos é impossível, outra coisa deve ser feita – e é chamada seguir o caminho socialista.

--------Grandes êxistos, novos desafios. Na China desde o início, forças sociais e políticas da direita e da esquerda, ativas na sociedade e no Partido, estiveram constantemente em conflito. A crescente desigualdade representa um perigo político, o veículo de disseminação de idéias de direita, despolitização e ilusões ingênuas. Mas a desigualdade econômica e social está diminuindo e diminuiu bastante nas últimas décadas. O conflito perpétuo entre a direita e a esquerda na China sempre foi refletido nas sucessivas linhas políticas implementadas pela liderança do Estado e do partido. Na era maoista, a linha de esquerda não prevaleceu sem luta. Mesmo depois da Revolução Cultural (que não resolveu a questão), a direita continua sendo uma parte forte de todos os órgãos de liderança. Ainda assim, a esquerda ainda está presente na base, restringindo a liderança suprema aos compromissos do “centro”. Mao pregava o seguinte princípio para a China : reunir a esquerda, neutralizar a direita (sem eliminá-la) e governar a partir da centro-esquerda. Desta forma, Mao deu um conteúdo positivo ao conceito de democratização da sociedade combinada com o progresso social no longo caminho ao socialismo. A questão da democracia ligada ao progresso social entra em contraste com a “democracia” desconectada do progresso social (na verdade regresso social) que é o caso das democracias ocidentais. A fórmula ocidental e da propaganda da mídia burguesa; de partidos múltiplos e eleições deve ser rejeitada, pois é um tipo de democracia que se transforma em farsa. A “linha de massa” (método proposto por Mao) é um meio de produzir consenso em torno de objetivos estratégicos e em constante progresso. Esse método tem que ser reinventado constantemente para evitar o avanço da direita. Esse método se opõe ao “consenso” obtido nos países ocidentais por meio da manipulação da mídia e da farsa eleitoral, que é nada mais nada menos do que o alinhamento às demandas do capital.

Abaixo: foto de Samir Amin : 1931-2018.




Daniel Miranda Soares é economista, mestre pela UFV e ex-pesquisador da FJP.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

A FORD E A DESINDUSTRIALIZAÇÃO PROVOCADA PELO NEOLIBERALISMO

 A Ford e a desindustrialização, por Paulo Kliass

Por  Paulo Kliass 13/01/2021 no GGN de Luís Nassif

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal



Estamos todos de acordo de que Bolsonaro realiza um governo autoritário, com traços nitidamente neofascistas. Sabemos também que a sua postura irresponsável perante a pandemia pode ser claramente qualificada como genocídio. Tampouco restam dúvidas quanto às intenções neoliberais de Paulo Guedes no comando da economia, onde o objetivo central sempre foi o de promover a destruição do Estado e o desmonte das políticas públicas. Nesse conjunto, a obsessão com a dilapidação do patrimônio estatal se concretiza por meio da venda das empresas estatais e outras formas mais sutis de privatização.

Isto posto, é forçoso reconhecer que não cabe atribuir a esse governo todo o peso e responsabilidade a respeito da decisão recente da Ford de encerrar suas linhas de produção em território brasileiro. Na verdade, a saída da multinacional do automobilismo vem apenas confirmar uma tendência histórica de perda crescente da presença da indústria em nossa capacidade produtiva e econômica. Trata-se do processo que o economês chama de “desindustrialização”, que pode ser perfeitamente identificado pela figura abaixo.

 



 

Ao longo das últimas sete décadas, a indústria brasileira conheceu duas fases bastante distintas. Numa primeira etapa, observou-se um crescimento expressivo, que tem início no pós guerra, em especial com a política de industrialização iniciada por Getúlio Vargas e levada à frente por Juscelino Kubitschek. A participação da indústria da transformação no Produto Interno sai de 16% e atinge um patamar próximo a 27% ao longo da década de 1970. Esse é o período chamado de “milagre econômico” durante a ditadura militar que se instalou em 1964. Data dessa época a constituição da indústria de bens de capital e de base (siderurgia, petroquímica, energia elétrica, entre outras), da indústria automobilística e de material elétrico e eletrônico.



Collor e o início do fim.

A segunda etapa vem na sequência do Plano Cruzado, em especial partir de 1990, quando Collor era o Presidente da República. Aquele ano foi um marco no processo de perda de importância da indústria em nosso PIB, com a introdução da abertura comercial indiscriminada e a disseminação generalizada da ideia de que tudo o que fosse importado seria de melhor qualidade. Ficaram muito marcadas as imagens, muito divulgadas à época, de uma suposta modernidade do produto estrangeiro, onde o Presidente inclusive associava os automóveis fabricados no Brasil por multinacionais a “carroças”, em contraposição às supostas virtudes dos veículos fabricados no exterior

A partir de então, a presença da indústria despenca daqueles 27% para o patamar atual em torno de 11%. Vale notar um sobre fôlego no início dos anos 2000, em especial, durante o primeiro mandato do Presidente Lula. Mas a partir de 2005, tudo volta à tendência anterior da desindustrialização acelerada. Na disputa da narrativa, esse processo era muitas vezes saudado como saudável, uma vez que a indústria seria vista como algo do passado. Os exemplos de países escandinavos, por exemplo, eram apontados como uma substituição positiva de plantas industriais por setores de serviços e da chamada “economia do conhecimento”. Ocorre que no Brasil, ao contrário, a perda de protagonismo da indústria deu-se com a maior importância exercida por setores de baixo valor agregado no processo. Trata-se do agronegócio em fase de expansão e os serviços de baixa qualidade, como telemarketing e as operadoras de entregas.

Essas quatro décadas de desindustrialização corresponderam também ao período de auge do ideário neoliberal, onde um dos alicerces residia justamente na crença que a liberalização comercial completa só traria benefícios para os países que a adotassem. A tempestade perfeita que se abateu sobre o Brasil veio com um longo período também de sobrevalorização cambial, em razão da política monetária de juros elevados praticada pelo Banco Central. Ao apresentar nosso país para o universo da especulação financeira internacional como o campeão da taxa de juros, os governos permitiram que a taxa de câmbio valorizada artificialmente estimulasse ainda mais o consumo de importados.

Informática e Gurgel: governo joga contra.

Todas as tentativas de se criar uma política industrial que favorecesse o surgimento e fortalecimento de atores industriais nacionais foram desmontadas. Esse foi o caso da política nacional de informática, por exemplo. Independentemente das críticas que possam ser feitas ao projeto, o fato é que o Brasil abriu mão unilateralmente de desenvolver tecnologia própria ou em condições de competir com os grupos multinacionais. As receitas do neoliberalismo apontavam que qualquer tentativa de proteção a setores nascentes ou estratégicos seria prejudicial ao país, em razão de custos fiscais associados aos subsídios necessários, aos preços mais altos e à qualidade inferior.

Outro exemplo emblemático foi um projeto na própria indústria automobilística, onde atuava a Ford. Ao longo da década de 1970/80, surge uma empresa nacional no setor, a Gurgel. Seus projetos eram ambiciosos e de custo relativamente reduzido, com inovações estratégicas já à época, como os motores à álcool e mesmo veículos elétricos. Porém, para competir e sobreviver em um ambiente dominado pelo oligopólio das multinacionais, era fundamental que a empresa contasse com apoio do setor público. Ao contrário de casos similares – como a Índia, por exemplo – o Brasil resolveu deixar Gurgel à deriva e a empresa não aguentou o clima pós abertura comercial. A falência em 1994 operou como uma pá de cal em qualquer ensaio de desenvolvimento tecnológico autônomo, que propiciasse algum grau mínimo de soberania nacional no setor.

O encerramento das atividades da Ford no Brasil implica na perda de 5 mil empregos diretos nas unidades espalhadas pelo Brasil inteiro. No quadro de aprofundamento do desemprego e da falência generalizada de empresas, certamente não pode ser entendida como uma boa notícia. Para além de tais postos de trabalho e da produção de veículos nas linhas de montagem cada vez mais automatizadas, a notícia é muito ruim também para o setor de auto peças, que depende basicamente das entregas para as própria montadoras, sob a base de encomendas. O chamado efeito em cascata de tal interrupção de atividades deverá provocar, além disso, um impacto negativo direto nas economias locais e regionais.

Necessário debate sobre rumos do desenvolvimento.

Apesar de tudo, o governo Bolsonaro nada fez para reverter tal quadro. As declarações do Presidente e de seu Ministro da Economia são quase de exaltação ao fim das atividades da multinacional por aqui. Permanece sempre a lógica obsessiva de Paulo Guedes em cortar despesas; no caso, os chamados “gastos tributários” sob a forma de isenções tributárias. Uma loucura, caso se leve em consideração a continuidade da produção do grupo aqui na nossa vizinha Argentina. Ou mesmo a opção do grupo em 2009 de ampliar os investimentos ainda no Brasil, quando Lula ocupava o Palácio do Planalto.

Seria importante que a decisão da Ford recolocasse o necessário debate acerca dos rumos do desenvolvimento brasileiro e da recuperação da importância do planejamento como instrumento público para a construção de um projeto estratégico de futuro. A indústria ainda permanece como a opção de geração de maior valor agregado para nossa economia, mas isso exige um investimento público pesado em áreas essenciais, como educação e ciência e tecnologia. A China e demais países asiáticos são o exemplo vivo de que a inserção internacional exige recuperação de protagonismo nacional e não mais apenas uma aceitação passiva de subalternidade no cenário global.

Não existe a alternativa falaciosa de saltar etapas, como nos fazem crer os mercadores ilusionistas do neoliberalismo. Só conseguiremos atingir, de forma mais soberana como nação, a tão sonhada autonomia da economia do conhecimento se tivermos um sólido domínio e presença em áreas estratégicas da produção industrial. Ou então permaneceremos deitados no berço esplêndido da destruição de nossas reservas naturais para exportação de minerais e produtos agropecuários. Esse é o caminho para fincarmos nossas raízes, de forma cada vez mais definitiva, no atraso do pacto neocolonial da divisão internacional do trabalho