sábado, 7 de março de 2020

PARAÍSOS FISCAIS E A PERVERSÃO DO CAPITALISMO FINANCEIRO.


PARAÍSOS FISCAIS E A PERVERSÃO DO CAPITALISMO FINANCEIRO.


INTRODUÇÃO. Os dois últimos livros de Ladislau Dowbor (O Capital Improdutivo e Além do Capitalismo, 2018 – disponíveis na internet) e o livro de François Chesnais (A Finança Mundializada, 2014, Boitempo Editorial ) retratam muito bem o papel do Capital Financeiro (ou capitalismo neoliberal ou mundialização financeira ou mesmo Financeirização da Economia) que a economia mundial passa a sofrer a partir dos anos 1980. Esse capital torna-se hegemônico a partir das reformas de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, no período 1979-1981 que desregulamentam o mercado financeiro, dando liberdade quase total aos empreendedores deste mercado, que passam a especular e a cometer fraudes constantemente. François Chesnais chama de “capital portador de juros” o que chamamos de Neoliberalismo ou Financeirização da Economia. Eles buscam “fazer dinheiro” sob a forma de juros de empréstimos, dividendos e outros pagamentos recebidos a título de posse de ações. Os investidores institucionais atuam com fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram sociedades de investimento, bônus do Tesouro e outras formas de títulos da dívida pública, obrigações das empresas e ações, planos de previdência privada, etc., formando um trampolim de uma acumulação financeira de grandes dimensões. Foi necessário que os Estados mais poderosos decidissem liberar o movimento dos capitais e desregulamentar e desbloquear seus sistemas financeiros a partir de 1979-81, dando início ao sistema de finança mundializada e interconectada internacionalmente. Os investidores institucionais foram os primeiros beneficiários da desregulamentação monetária e financeira e ao longo dos anos 80, eles tiram dos bancos o primeiro lugar como pólo da centralização financeira. O mercado de câmbio com taxas flexíveis e o colapso do sistema de Bretton Woods foi o primeiro a entrar na mundialização financeira, junto com a abertura externa e interna dos sistemas nacionais (o livre comércio internacional) antes fechados e compartimentados, conduziram à emergência de um espaço financeiro mundial.

O PODER DO CAPITAL FINANCEIRO

Segundo Dowbor (O Capital Improdutivo) uma pesquisa do ETH (Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tec­nológica), de 2011, iluminou pela primeira vez o sistema global nesta escala, com dados concretos ….A metodologia é muito clara: selecionaram as 43 mil cor­porações mais importantes no banco de dados Orbis 2007, composto por 30 milhões de empresas, e passaram a estudar como elas se relacionam: o peso econômico de cada entidade, a sua rede de conexões, os fluxos financeiros e em que empresas têm participações que permitem controle indireto. A inovação é que a pesquisa do ETH realizou este trabalho para o conjunto das principais corporações do planeta, e traçou o mapa de controle global. Descobrimos que as corporações transnacionais formam uma gigantesca estrutura em forma de gravata borbole­ta (bow-tie), e que uma grande parte do controle flui para um núcleo (core) pequeno e fortemente articulado de instituições fi­nanceiras. O cálculo consistiu em identificar qual a fração de atores no topo que detém mais de 80% do controle de toda a rede…… Os resultados são fortes: “apenas 737 dos principais atores (top-holders) acumulam 80% do controle sobre o valor de todas as empresas transnacionais (ETN). Isto significa que o con­trole em rede (network control) é distribuído de maneira muito mais desigual do que a riqueza. Em particular, os atores no topo detêm um controle dez vezes maior do que o que poderia se es­perar baseado na sua riqueza”.

PIB MUNDIAL = 73 trilhões de dólares ; Produtos financeiros = 710 trilhões de dólares; em 2015. (veja gráfico abaixo).



Um fato adicional relevante neste ponto é que ¾ do núcleo são intermediários financeiros…...Um efeito mais amplo é a tendência de dominação geral dos sistemas especulativos sobre os sistemas produtivos …….O gigante corporativo, que abraça muito mais recursos do que a sua capacidade de gestão, é demasiado fechado e articulado para ser regulado por meca­nismos de mercado, e poderoso demais para ser regulado por governos eleitos. Os gigantes empresariais detêm ativos muito mais elevados do que o PIB da maioria dos países (os cinco primeiros só não são maiores do que o PIB dos EUA, China, Japão e Alemanha); além disso, eles têm em comum o fato de constituírem redes de controle de inúmeras atividades, através de controle acionário.
O gigante Tencent, multinacional de base chinesa, 6ª maior depois da Apple, Google, Microsoft, Amazon e Facebook, dá uma boa ideia de uma corporação moderna. Em simples consulta na Wikipédia é possível saber que esse grupo controla atividades de e-comércio, jogos de vídeo, software, realidade virtual, compartilhamento de transporte, atividade bancária, serviços financeiros, fintech, tecnologia de consumidor, informática, indústria automobilística, produção de filmes, entradas de cinema, música, tecnologia espacial, recursos naturais, smartfones, big data, agricultura, serviços médicos, cloud computing, mídia social, e-books, serviços de internet, educação, energia renovável, inteligência artificial, robótica, entrega de alimentos e outros. Qualquer setor, qualquer país, em atividades cruzadas com inúmeras empresas que vão desde o Youtube até a empresa francesa de perfumes L’Oréal. É pouco provável que você tenha ouvido falar da Tencent, e, no entanto, seguramente em alguma das suas atividades de compra você alimenta os controladores dessa empresa. Uma parte do seu dinheiro vai parar nos bolsos dos seus controladores.

PARAÍSOS FISCAIS

Todos os grandes grupos financeiros mundiais e os maiores grupos econômicos em geral estão hoje dotados de filiais (ou matrizes) em paraísos fiscais....Nos paraísos fiscais, os recursos são reconvertidos em usos diversos, repassados a empresas com nomes e nacionalidades diferentes, lavados e formalmente limpos, livres de qualquer pecado. Não é que tudo se torne secreto, mas com a fragmentação do fluxo financeiro, que ressurge em outros lugares e com outros nomes, é o conjunto do sistema que se torna opaco, incluindo-se inúmeras empresas formalmente pertencentes a nações concretas......(O FILME “A LAVANDERIA” NA NETFLIX retrata bem esta situação). Mas na base está um problema estrutural: o sistema financeiro é planetário, enquanto as leis são nacionais, e não há governo/governança mundial.....As políticas keynesianas deixam em grande parte de ser funcionais quando se rompe a unidade territorial entre o espaço das políticas macroeconômicas de uma nação e o espaço global do sistema financeiro.
Todas as grandes corporações têm conexões solidamente implantadas em paraísos fiscais, podendo movimentar os seus recursos sem qualquer controle da área pública, de governos eleitos. Mais ainda, com o descontrole dos fluxos financeiros internacionais, é a própria capacidade de cobrança de impostos e de canalização produtiva dos recursos pelos governos eleitos que se vê prejudicada. É muito característico a Apple ter pago 0,05% em impostos sobre os seus imensos lucros na Europa, em 2016. José Antonio Ocampo resume de maneira clara: “A globalização tornou obsoleto o regime internacional de tributação das empresas. O esquema atual foi elaborado pelos países desenvolvidos no início do século XX, quando suas empresas, que dominavam o comércio mundial – então fundamentalmente de bens – eram sociedades integradas que comercializavam com empresas radicadas em outros países ou colônias. Mas hoje, quase a metade do comércio mundial ocorre entre matrizes e filiais de empresas transnacionais, o setor de serviços representa três quintos do PIB mundial, e os países em desenvolvimento produzem dois quintos desse produto, sendo suas grandes empresas também transnacionais.”
O que aparece na mídia econômica é a briga entre a União Europeia e os Estados Unidos, em torno dos impostos devidos pelas empresas, mas o que realmente importa é que a capacidade de os governos promoverem o desenvolvimento por meio de investimentos em infraestruturas e em políticas sociais fica drasticamente reduzida. Se não governamos os recursos que permitem financiar as políticas, que política estamos governando? O capitalismo em que a economia é planetária e a regulação é nacional simplesmente trava a capacidade dos governos exercerem a sua principal função, que é de equilibrar o desenvolvimento por meio de políticas econômicas. Políticas nacionais keynesianas no contexto de fluxos financeiras globais deixam em grande parte de funcionar. O longo prazo previsto por Keynes chegou.


A LÓGICA DO CAPITAL MUDOU – DO PRODUTIVO AO IMPRODUTIVO.
A lógica sistêmica muda radicalmente, pois o interesse maior desses grupos está na rentabilidade financeira final, definida por aqueles que estão no topo da pirâmide. O espaço de decisão empresarial, visto tradicionalmente no nível de um produtor concreto de um bem ou serviço determinado, e que, portanto, estaria interessado inclusive em prestar um bom serviço ao cliente, se desloca. A mudança profunda em termos de quem controla as decisões leva ao deslocamento da forma de se extrair a mais valia gerada no quadro dos processos produtivos. Os acionistas dominantes, ou controladores financeiros de diversos tipos, veem a empresa produtora que está na base da pirâmide como uma unidade de extração de dividendos. Aos acionistas do Bradesco (via Vale e Vale-Par) interessa apenas a maximização do rendimento financeiro da Samarco, e em geral no curto prazo. Uma unidade empresarial produtora de bens ou serviços podia se orientar por uma visão estrutural e de longo prazo de inserção na comunidade, de apoio à formação de funcionários, de investimento no desenvolvimento sustentável do território onde se situa. MAS…. NESTE CASO NÃO É SÓ UMA UNIDADE PRODUTORA DE BENS…..ELA É SÓ A PONTA DA BASE …. QUEM MANDA É O CAPITAL FINANCEIRO QUE DOMINA E ESTÁ NO TOPO DA PIRÂMIDE…. ENTÃO A ORDEM VEM DO TOPO…..NADA DE INVESTIMENTOS PRODUTIVOS SUSTENTÁVEIS OU DE MELHORIA DA SEGURANÇA DA COMUNIDADE….. Resultados: os maiores desastres ecológicos mundiais registrados em Mariana e Brumadinho e em outros lugares do mundo…. Centenas de vítimas e perdas humanas…..Mas o capital financeiro não está nem aí…..aliás eles nem sabem o que está acontecendo… não entendem nada de produção…. Só querem que maximizem seus dividendos aplicados na rede. A lógica da rentabilidade mudou.
Conhecemos os produtos finais que aparecem nas gôndolas dos supermercados, mas saber a quem pertencem, quem os controla, qual política adotada em termos ambientais, sociais ou de simples segurança do consumidor, está evidentemente fora do nosso alcance. Os grupos centrais acima constituem holdings financeiras que controlam outras instituições financeiras dispersas em vários setores e vários países que, por sua vez, controlam empresas realmente produtoras de alguma coisa que se consome. Nomes de referência como Nestlé apenas são mantidos pelo elevado investimento feito durante décadas para associar a marca a imagens positivas. No topo decidem gestores financeiros que pouco entendem das esferas produtivas; e nem poderiam, considerando a diversidade de produtos, setores e países de atividade. Enfrentamos uma mudança qualitativa. Não se trata mais de corporações de um país controlando a política desse mesmo país, mas de grupos mundiais exercendo seu controle, de maneira articulada, sobre um conjunto de países simultaneamente, com capacidade de mudar as leis nacionais em função de interesses transnacionais.
Os impactos são sistêmicos. “As propinas contaminam e corrompem governos, e os paraísos fiscais contaminam e corrom­pem o sistema financeiro global”. A realidade é que se criou um sistema que torna inviável qualquer controle jurídico e penal da criminalidade bancária. Praticamente todos os grandes grupos estão com dezenas de condenações por frau­des dos mais diversos tipos, mas em praticamente nenhum caso houve sequelas judiciais como condenação pessoal dos responsáveis. O sistema criado envolve uma multa, acordo judi­cial (settlement) que libera a corporação, mediante pagamento, do reconhecimento de culpa. Basta a empresa fazer, enquanto pratica a ilegalidade, uma provisão financeira para enfrentar os prováveis custos do acordo judicial. Os responsáveis pelo desastre de Mariana pagaram uma “ninharia” às vítimas e pagaram muito mais em dividendos aos seus acionistas.
O sistema é planetário, e o fato de estar solidamente im­bricado no sistema financeiro internacional mostra a que ponto não se trata de uma atividade paralela, uma exceção às regras de comportamento financeiro, mas de um elemento estruturante fundamental de todo o processo produtivo moderno
Um estudo de Mark Peith e Joseph Stiglitz resume perfeita­mente o que enfrentamos: “Cresce o consenso de que os paraísos fiscais – jurisdições que solapam as normas globais de transparên­cia empresarial e financeira – representam um problema global por facilitarem tanto a lavagem de dinheiro quanto a evasão e eli­são fiscais, contribuindo assim com o crime e níveis inaceitáveis de desigualdade global de riqueza.”
A lógica da acumulação de capital mudou. Os recursos, que vêm em última instância do nosso bolso (os custos financeiros estão nos preços e nos juros que pagamos), não só não são rein­vestidos produtivamente nas economias como sequer pagam impostos. Não se trata apenas da ilegalidade da evasão fiscal e da injustiça que gera a desigualdade. Em termos simplesmen­te econômicos, de lucro, reinvestimento, geração de empregos, consumo e mais lucros – o ciclo de reprodução do capital --, o sistema trava o desenvolvimento. É o capitalismo improdutivo.

HÁ NECESSIDADE DE UM NOVO PACTO GLOBAL
Segundo Dowbor, democracias nacionais, eleições, mercados locais e comércio exterior, estão saindo de cena com grande rapidez. Mudam as infraestruturas, as bases produtivas do planeta, e com isso tornam-se profundamente desajustadas as superestruturas, o conjunto de regras do jogo herdadas da era da economia das nações. O planeta encolheu, temos todos de buscar objetivos de desenvolvimento sustentável, as nações têm de se conformar com um papel reduzido, os povos têm de aprender a conviver em ambiente multicultural. E muito além do Estado de Bem-Estar, temos de evoluir, na formulação da UNCTAD, para um Global New Deal, um novo pacto global, pois a desarticulação presente está afundando o mundo em dramas ambientais, sociais e econômicos.
.No conjunto, as formas de regulação e de dominação na sociedade, no nível das superestruturas, deslocaram-se profundamente relativamente à era do capitalismo industrial e concorrencial. O novo mix de organização do poder na sociedade articula o poder político das corporações, a vigilância capilarizada sobre as populações por meio do controle da privacidade individual, a publicidade invasiva como manipulação dos comportamentos e dos valores da sociedade, e a generalização do rentismo como mecanismo de extração do excedente social.
HÁ UMA FRAQUEZA BÁSICA NO SISTEMA FINANCEIRO GLOBAL : o enriquecimento no topo da pirâmide é claramente improdutivo, e a narrativa do merecimento está se desfazendo rapidamente. Em particular, em termos econômicos, o sistema se apropria do excedente não produzindo ou estimulando a produção, mas pelo contrário gerando escassez. A concentração de renda e de patrimônio aprofunda a desigualdade, e hoje os pobres têm consciência do massacre que sofrem. E são muitos. As formas de produção são um desastre para o meio ambiente, e as pessoas no mundo começam a se mobilizar. Tal como funciona, em termos sociais, ambientais e econômicos, o sistema está se tornando cada vez mais disfuncional.
O principal fator de produção, o conhecimento, é um fator de produção imaterial, portanto, pode ser estocado, analisado, transmitido e generalizado em volumes virtualmente infinitos e praticamente sem custos. O conhecimento pode ser generalizado para toda a população e todas as empresas através de aparelhos simples e baratos que cabem no bolso. …. as corporações travam o acesso com pretexto da legitimidade da propriedade intelectual. Não há como não ver a imensa generalização da prosperidade planetária que está no horizonte, como não há como não ver a batalha das corporações e dos rentistas para tentar travar o acesso. …. as instituições que geram barreiras e escassez artificial aparecem cada vez mais como o que são: entraves à generalização do progresso…. O conceito de propriedade, em particular a sua legitimidade, precisa agora ser radicalmente redimensionado. Não por razões filosóficas ou jurídicas, mas por razões evidentes de produtividade sistêmica da sociedade. ….Um segundo grande eixo de destravamento da nossa capacidade de generalizar o progresso e a prosperidade compartilhada consiste em resgatar o nosso direito de nos reapropriarmos dos nossos próprios recursos financeiros….. O grande capital controla o conhecimento e os recursos financeiros, cobrando com royalties, patentes e copyrights o acesso ao primeiro, e com juros absurdos o acesso ao segundo, gerando escassez para poder cobrar o acesso. É um sistema de minorias que enriquecem ao dificultar o desenvolvimento, em vez de promovê-lo.
Sabemos bem hoje o que deve ser feito, estão aí os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, excelente sistematização das prioridades, como redução da desigualdade e da pobreza, na visão ampla de uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável. O acesso generalizado ao conhecimento no sentido amplo, bem como o acesso aos recursos financeiros, constituem os meios básicos para que os ODS se materializem. Temos, como dizem, a faca e o queijo, mas eles estão em mãos erradas.

Daniel Miranda Soares é economista, mestre pela UFV e ex-professor universitário aposentado.

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