sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

PATRICE LUMUMBA E A HISTÓRIA DA ÁFRICA

 

Patrice Lumumba lutou para reescrever a história da África

POR Sean Jacobs

Tradução
Priscilla Marques

 

REVISTA JACOBINA   ·  17/01/2024

Neste dia, em 1961, o líder anticolonial Patrice Lumumba foi assassinado em uma conspiração articulada pela CIA com o Exército congolês e mercenários estrangeiros. Ele lutou contra o colonialismo belga e criou o Movimento Nacional Congolês, o único partido que ofereceu uma visão nacional - em oposição a uma visão étnica - e meios de organizar os congoleses em torno de um ideal progressista.

 

Patrice Lumumba foi primeiro-ministro do recém-independente Congo por apenas sete meses, entre 1960 e 1961, antes de ser assassinado, 63 anos atrás, com 36 anos de idade.

No entanto, a curta vida política de Lumumba – assim como figuras como Thomas Sankara e Steve Biko, que tiveram vidas igualmente curtas – ainda é um ponto de referência para debates sobre o que é politicamente possível na África pós-colonial, o papel de líderes carismáticos e o destino da política progressista em outros lugares.

Os detalhes da biografia de Lumumba são curiosos e controversos: um ex-funcionário dos Correios no Congo Belga, ele se tornou político após ingressar em um ramo local de um partido liberal belga. Ao retornar de uma viagem de estudos à Bélgica organizada pelo partido, as autoridades notaram seu crescente envolvimento político e o prenderam por desviar fundos do correio. Ele cumpriu 12 meses de prisão.

O historiador congolês Georges Nzongola-Ntalaja – que estava no ensino médio durante a ascensão e o assassinato de Lumumba – destaca que as acusações foram fabricadas. Seu principal efeito foi radicalizá-lo contra o racismo belga, embora não contra o colonialismo. Após sua liberação em 1957, Lumumba, que na época era vendedor de cerveja, foi mais explícito sobre a autonomia congolense e ajudou a fundar o Movimento Nacional Congolês [Congolese National Movement], o primeiro grupo político congolês que explicitamente rejeitou o paternalismo belga, demandando pela independência e exigindo que a vasta riqueza mineral do Congo (explorada pela Bélgica e por empresas multinacionais euro-americanas) beneficiasse primeiramente os congoleses.

Para a opinião pública belga – que destacava as diferenças étnicas congolesas, infantilizava os africanos e, no final dos anos 1950, ainda tinha um plano de 30 anos para a independência congolesa – as declarações de Lumumba e do Movimento Nacional Congolês foram chocantes.

Dois meses após sua libertação da prisão, em dezembro de 1958, Lumumba estava em Gana, a convite do Presidente Kwame Nkrumah, que havia organizado a Conferência de Todo Povo de África [All Africa People’s Conference]. Lá, enquanto vários outros nacionalistas africanos que buscavam a independência política, ouviram Lumumba declarar:

Os ventos da liberdade que atualmente varrem toda a África não deixaram o povo congolês indiferente. A consciência política, que até muito recentemente estava adormecida, agora está se manifestando e assumindo uma expressão visível, e ela se afirmou com ainda mais força nos meses vindouros. Portanto, estamos assegurados do apoio das massas e do sucesso dos esforços que estamos empreendendo.

 

Os belgas concederam relutantemente a independência política aos congoleses, e 2 anos depois, após uma vitória decisiva do Movimento Nacional Congolês nas primeiras eleições democráticas, Lumumba se viu eleito primeiro-ministro e com o direito de formar um governo. Um líder mais moderado, Joseph Kasavubu, ocupava a posição em grande parte cerimonial de presidente congolês.

Em 30 de junho de 1960, Dia da Independência, Lumumba proferiu o que hoje tem sido considerado um discurso atemporal. O rei belga, Boudewijn, abriu o evento elogiando o regime assassino de seu tataravô, Leopoldo II (onde 8 milhões de congoleses morreram durante seu reinado de 1885 a 1908), como benevolente, destacando os supostos benefícios do colonialismo e advertiu os congoleses: “Não comprometam o futuro com reformas precipitadas.” Kasavubu, previsivelmente, agradeceu ao rei.

Então, Lumumba, de maneira não programada, subiu ao púlpito. O que aconteceu em seguida se tornou uma das declarações mais reconhecíveis do desafio anticolonial e um programa político pós-colonial. Como o escritor e crítico literário belga Joris Note apontou posteriormente, o texto original em francês consistia em não mais do que 1.167 palavras. No entanto, abordou muitos pontos importantes.

A primeira metade do discurso traçou uma trajetória do passado ao futuro: a opressão que os congoleses tiveram que suportar juntos, o fim do sofrimento e do colonialismo. A segunda metade delineou uma visão ampla e convocou os congoleses a se unirem na tarefa que tinham pela frente.

O mais importante é que os recursos naturais do Congo iam beneficiar seu povo em primeiro lugar: “faremos com que as terras de nosso país beneficiem primeiramente seus filhos”, disse Lumumba, acrescentando que o desafio era “criar uma economia nacional e garantir nossa independência econômica”. Os direitos políticos seriam reimaginados: “revisaremos todas as leis antigas e as transformaremos em novas leis que serão justas e nobres”.

 

“A CIA tentou envenená-lo, mas acabou optando por políticos locais (e assassinos belgas) para fazer o trabalho.”

 Deputados congoleses e aqueles que ouviam pelo rádio irromperam em aplausos. Mas o discurso não foi bem recebido pelos antigos colonizadores, jornalistas ocidentais, nem pelos interesses multinacionais de mineradoras, elites comerciantes locais (especialmente Kasavubu e elementos separatistas no leste do país), governo dos Estados Unidos (que rejeitou os apelos de Lumumba para ajudar na luta contra os belgas reacionários e os separatistas, forçando-o a recorrer à União Soviética) e até mesmo pelas Nações Unidas.

Esses interesses encontraram um cúmplice, o amigo de Lumumba, o ex-jornalista e agora chefe do Exército, Joseph Mobutu. Juntos, eles trabalharam para fomentar a rebelião no Exército, alimentar a agitação, explorar ataques contra brancos, criar uma crise econômica e, eventualmente, sequestrar e executar Lumumba. A CIA tentou envenená-lo, mas acabou optando por políticos locais (e assassinos belgas) para fazer o trabalho. Ele foi capturado pelo Exército amotinado de Mobutu e levado à província separatista de Katanga, onde foi torturado, baleado e morto.

Na sequência de seu assassinato, alguns dos companheiros de Lumumba – especialmente Pierre Mulele, ministro da Educação em seu governo – controlaram parte do país e lutaram bravamente, mas foram esmagados por mercenários norte-americanos e sul-africanos. Nessa época, Che Guevara viajou para o Congo em uma missão militar fracassada para ajudar o exército de Mulele.

Mobutu  colocou a máscara do anticomunismo, ao declarar o Estado unipartidário, repressivo e governar, com o consentimento dos Estados Unidos e dos governos ocidentais, pelos próximos trinta e poucos anos.

Em fevereiro de 2002, o governo da Bélgica expressou “seus profundos e sinceros arrependimentos e suas desculpas” pelo assassinato de Lumumba, reconhecendo que “alguns membros do governo e alguns atores belgas na época têm uma parte inegável de responsabilidade pelos acontecimentos.”

Uma comissão governamental também ouviu testemunhos de que “o assassinato não poderia ter sido realizado sem a cumplicidade de oficiais belgas apoiados pela CIA, e concluiu que a Bélgica tinha uma responsabilidade moral pelo assassinato”.

Hoje, Lumumba possui uma tremenda força semiótica: ele é um avatar das redes sociais, um meme no Twitter e uma fonte de citações inspiradoras – um herói perfeito como Biko. Ele está até livre do tipo de críticas reservadas a figuras como Fidel Castro ou Thomas Sankara, que enfrentaram algumas das contradições inerentes de seus próprios regimes por meio de “métodos antidemocráticos”.

Nesse sentido, Lumumba polariza os debates sobre estratégia política: muitas vezes, ele é criticado como sendo apenas um líder carismático ou um bom orador com visão estratégica bastante limitada.

Por exemplo, no livro muito elogiado do escritor belga de ficção histórica David van Reybrouck, Congo: An Epic History of a People, Lumumba é caracterizado como um mau estrategista, pouco estadista e mais interessado em rebelião e adulação do que em governança. Ele seria culpado por não priorizar os interesses dos ocidentais.

A denúncia de Lumumba ao rei belga em junho de 1960, por exemplo, só serviu para fortalecer seus inimigos, argumenta Van Reybrouck. Lumumba também foi criticado por seus críticos ocidentais por se voltar para a União Soviética depois que os Estados Unidos o haviam rejeitado.

Mas, como o escritor Adam Shatz argumentou: “Não está compreensível como… em seus dois meses e meio no cargo, Lumumba poderia ter lidado de maneira diferente com uma invasão, duas rebeliões secessionistas e uma campanha americana secreta para desestabilizar seu governo.”

 

Talvez ainda mais poderoso seja como Lumumba lidou com o tamanho do seu desafio. À medida que a decepção com os movimentos de libertação nacional na África (em particular, Argélia, Angola, Zimbábue, Moçambique e mais recentemente o Congresso Nacional Africano da África do Sul) se instala, e novos movimentos sociais (#OccupyNigeria, #WalktoWork em Uganda, o mais radical #FeesMustFall e lutas por terra, moradia e saúde na África do Sul) começam a tomar forma, referências e imagens de Patrice Lumumba servem como um chamado à ação.

 

“O Movimento Nacional Congolês de Lumumba foi o único partido que ofereceu uma visão nacional – em oposição a uma visão étnica – e meios de organizar os congoleses em torno de um ideal progressista.”

No Congo de Lumumba, cidadãos comuns estão atualmente lutando contra as tentativas do presidente Joseph Kabila de contornar a Constituição (seus dois mandatos expiraram em dezembro, mas ele se recusou a renunciar). Centenas foram mortos pela polícia e milhares foram presos. Kabila, que herdou a presidência de seu pai, que derrubou Mobutu, explora a fraqueza da oposição, especialmente o poder da etnia (por meio da política clientelista) para dividir os congoleses politicamente. Nisso, Kabila esteve apenas imitando os colonizadores belgas e Mobutu.

Aqui, o legado de Lumumba pode ser útil. O Movimento Nacional Congolês de Lumumba foi o único partido que ofereceu uma visão nacional – em oposição a uma visão étnica – e meios de organizar os congoleses em torno de um ideal progressista.

Mas a história de Lumumba não oferece apenas um convite para revisitar o potencial político de movimentos e correntes passados, mas também oportunidades para se abster de projetar demais em líderes como Lumumba, que tiveram uma vida política complicada e que não puderam confrontar a confusão da governança pós-colonial. Também significa tratar os líderes políticos como seres humanos. Para levar a sério o conselho do cientista político Adolph Reed Jr. sobre Malcolm X:

Ele era apenas como o resto de nós — uma pessoa comum carregada de conhecimento imperfeito, fraquezas humanas e imperativos conflitantes, mas ainda assim tentando dar sentido à sua história muito específica, tentando sem sucesso transcendê-la e lutando para direcioná-la de forma humana.

É talvez então que possamos começar a tornar real o desejo crítico de Patrice Lumumba, como autorreflexão, quando ele escreveu em uma carta da prisão para sua esposa em 1960:

O dia chegará quando a história falará. Mas não será a história que será ensinada em Bruxelas, Paris, Washington ou nas Nações Unidas. Será a história que será ensinada nos países que conquistaram a liberdade do colonialismo e de seus fantoches. África escreverá sua própria história e, tanto no norte quanto no sul, será uma história de glória e dignidade.

 

Sobre os autores

Sean Jacobs

é professor associado de assuntos internacionais na New School e editor-fundador da Africa is a Country.

 

FONTE:    https://jacobin.com.br/2024/01/patrice-lumumba-lutou-para-reescrever-a-historia-da-africa/

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

OCIDENTE DIMINUI E O ORIENTE CRESCE EM 2023

 

Para analistas, EUA encolheram na geopolítica global em 2023, enquanto Rússia e China se destacaram

28.12.2023   SPUTNIK  BRASIL

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas destacam que o principal marco de 2023 no que diz respeito à geopolítica foi o declínio dos Estados Unidos e do Ocidente como um todo, e a ascensão do Sul Global, liderada por Rússia e China.

O ano de 2023 ficou marcado por um processo de mudança na geopolítica global, com antigas organizações internacionais sendo questionadas e pela ascensão de novos atores globais.

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas explicam quais foram os grandes vencedores na geopolítica neste ano, e quem foram os perdedores, além de apontarem fatos que marcaram os últimos 12 meses.

 

Para Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor, youtuber, fundador da Universidade Virtual do Vassoler e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA), o ano de 2023 foi marcado por um processo de reorganização de eixos, onde os EUA foram os maiores perdedores.

Segundo ele, a cadeia de eventos vivenciada hoje, com o conflito entre Rússia e Ucrânia, a ofensiva truculenta de Israel na Palestina e o aumento das tensões no mar do Sul da China, remete a um processo iniciado no ano de 2021, com a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão.

"Eu gostaria de retornar a 2021, porque aquela é uma sinalização importante de um início de colapso da dominação inequívoca dos EUA no mundo. Porque os EUA só saíram do Afeganistão porque o custo político-econômico da saída do Afeganistão não era mais passível de ser suportado", explica Vassoler.

Ele acrescenta que os EUA "se arrogam o papel de maior democracia do mundo", mas o país, na verdade, é sustentado por lobby privado, em especial o da indústria de armas.

"Eu só posso falar em democracia nos Estados Unidos se eu esquecer historicamente e socialmente o que é a democracia de fato. Os Estados Unidos são uma plutocracia dominada pelo complexo industrial, financeiro e militar", afirma o especialista.

 

Ele acrescenta que o fato de o lobby da indústria das armas não ter conseguido sustentar a permanência dos EUA no Afeganistão, que durou 20 anos, "é um sinal bem interpretado pelo eixo do Pacífico, por China e por Rússia, de que os Estados Unidos não têm mais sua estrutura de manutenção".

"Isso não significa que [os EUA] ainda não sejam a maior economia do mundo, mas não têm mais a fatia do bolo econômica, geoestratégica e geopolítica para manter essa dominação inequívoca."

Vassoler lembra um discurso do presidente russo, Vladimir Putin, feito em 2007, em Munique, Alemanha, na presença de altos mandatários da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), afirmando que a dominação unipolar e inequívoca dos Estados Unidos havia chegado ao fim. "Ele foi ironizado, satirizado, mas deu um aviso. Não à toa, um ano depois, [Putin] mandou tanques lá para a Geórgia."

O especialista destaca que a expansão da OTAN observada desde meados da década de 90, contradizendo aquilo que os Estados Unidos haviam prometido a Mikhail Gorbachev, provocou a reação da Rússia.

"O pessoal fala que o Gorbachev tinha que ter pedido uma assinatura dos EUA, que o James Baker prometeu, apalavrou que os EUA não se expandiriam para além da Alemanha Ocidental, [por meio da] OTAN. Gente, se os Estados Unidos tivessem assinado alguma coisa, eles respeitam alguma coisa? Não. Isso teria feito alguma diferença? Eles expandiram a OTAN e enfureceram a Rússia quando três ex-repúblicas soviéticas, os países bálticos, a Letônia, a Lituânia e a Estônia, em 2004, entraram para a OTAN", destaca Vassoler.

 

"A questão é a seguinte: existe essa contraposição. Os EUA veem a Rússia como adversário militar, mas o grande adversário dos Estados Unidos geoeconomicamente é a China. E essa aliança forjada entre Rússia e China […] é um fato para mudar o cenário geopolítico do mundo, tão importante quanto o que aconteceu no pós-Segunda Guerra", acrescenta.

 

Por que a China está se destacando?

 

Vassoler afirma que o fortalecimento geopolítico e econômico da China é tudo o que os EUA não desejam. Porém, esse cenário vem se consolidando, em grande parte pela aliança entre Moscou e Pequim.

"Dado esse inimigo comum para China e Rússia, os EUA, [Moscou e Pequim] se unem em uma aliança militar e econômica, e a China tem esse restabelecimento das rotas da seda. [...] A China vai patrocinando infraestrutura em vários países e os EUA não querem a expansão do fortalecimento econômico chinês com esses patrocínios — que, obviamente, depois, cobram seus preços com os empréstimos bancários e tudo mais —, porque está aumentando a fatia do bolo do PIB mundial que os chineses abocanham."

Ele lembra que a China, que na década de 1980 tinha o tamanho da economia brasileira, hoje já é vista se aproximando pelo retrovisor dos EUA.

"Já está começando a chegar àquele ponto cego do retrovisor que você não consegue mais ver quem está atrás de você, que já está te passando."

Vassoler afirma que a China hoje, assim como os EUA, possui as chamadas plataformas-Estado, "que são as grandes plataformas que fazem a mediação de todas as nossas transações hoje em dia".

"Só a China e os EUA têm essas plataformas. Eu posso falar, por exemplo, do Alibaba, da Huawei e aí, obviamente, as que a gente mais conhece aqui no Ocidente, o Facebook, o Instagram e o próprio YouTube [plataformas proibidas na Rússia por extremismo]."

 

Ele argumenta que, atualmente, "a China tem um potencial de ciberguerra com essas plataformas, com uma compilação de grandes dados, que faz frente aos Estados Unidos".

Segundo o especialista, todos esses fatores apontam uma mudança no eixo geopolítico global, que contou também com a resiliência econômica da Rússia após as sanções impostas pelos EUA e pela Europa no contexto do conflito ucraniano, recebida com surpresa pelo Ocidente.

 

"A Rússia se voltou cada vez mais para o eixo do Oriente Médio, da Índia, do Paquistão e da China, sobretudo. A economia russa não colapsou. Existem declarações de altos mandatários das Forças Armadas e da inteligência ucraniana dizendo: 'Olha, a contraofensiva já era, essa forma de recrutamento aqui está colapsando e a Ucrânia já não tem tropas'. Então, é uma admissão de que a Ucrânia não vai ter condições de tocar essa guerra adiante."

Nesse contexto, Vassoler acrescenta que "os EUA roubaram o gás da Rússia". "Eles tomaram o mercado de gás e fornecem gás, o liquefeito, 30% mais caro para a União Europeia."

 

Declínio do Ocidente como espaço de influência global

 

Analúcia Danilevicz Pereira, especialista em relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma considerar que os principais eventos de 2023 refletem processos de mudanças importantes iniciadas há 30 anos, a partir do final da Guerra Fria.

"Mas eu acho que o que nós temos, assim, de mais marcante em termos mais amplos é uma espécie de declínio do Ocidente como um espaço de poder e de influência global. Nós tivemos inúmeros eventos que vão revelando essa nova realidade internacional."

Pereira destaca, em especial, os eventos observados em países do continente africano.

"Nós observamos mudanças muito importantes no comportamento político, no posicionamento desses países, no padrão de realinhamento internacional que esses países vêm assumindo e que nos mostram justamente a importância de países que vêm assumindo uma condição, vamos dizer assim, de referência para um enorme espaço mundial que outrora chamávamos de terceiro mundo", explica a especialista.

"Me refiro ao comportamento internacional da Rússia, ao papel que a China vem desempenhando também, estabelecendo uma série de conexões econômico-comerciais e político-diplomáticas que vão oportunizando condições novas para Estados mais frágeis ou com menos capacidade estatal. Enfim, que conseguem, agora, se libertar das amarras neocoloniais de exploração dos seus recursos, das suas capacidades."

 

Ela acrescenta que a Índia também vem se projetando como país importante, o que, segundo ela, sinaliza claramente a importância do BRICS nessa nova configuração internacional que vem se constituindo.

Analúcia afirma que a China, nesse contexto, vem desempenhando um papel fundamental especialmente a partir de 2013, "com a reinauguração de uma via de conexão mundial que é a chamada Nova Rota da Seda".

"Para mim, esse é o foco e é o grande problema. Ou seja, a China vem conduzindo a reestruturação de um enorme espaço territorial, mas não só [isso]. Também tem as suas vias marítimas, vamos dizer assim, que interligam não só o espaço asiático, mas também o espaço asiático ao espaço africano, ao espaço europeu e também ao espaço americano."

A especialista argumenta que essa expansão de conexão da China, de Pequim à América do Sul, vem desempenhando um papel importante e decisivo "no sentido de uma reconfiguração internacional".

"E isso, evidentemente, vai produzindo uma série de conflitos, especialmente em relação ao antigo polo de poder internacional, que é o Ocidente."

 

A analista afirma que não pode deixar de citar também o papel da Rússia nessa nova configuração geopolítica global.

"Porque a Rússia acaba por fazer algo que os chineses não se dispõem a fazer. Esses conflitos a que eu me refiro, que são resultantes, no final das contas, de uma guerra econômica que vem acontecendo. Os russos têm se disposto também a apoiar esses países afro-asiáticos, no que diz respeito às questões securitárias", explica.

"Então, eu diria que são os dois grandes polos hoje que têm uma influência muito importante em 75% do planeta, se nós considerarmos que os outros 25% compõem esse chamado mundo ocidental", acrescenta.

Ela afirma que nesses dois polos, um "está em ascensão e com vitalidade, outro em declínio e, evidentemente, com deficiências muito grandes que se revelam numa estratégia um tanto quanto desencontrada".

"Porque os Estados Unidos e as instituições internacionais ocidentais, que evidentemente existem para gerenciar essas tentativas de estabelecimento de ordem internacional por parte do Ocidente, têm demonstrado que são agentes desestabilizadores, são produtores de instabilidade internacional. Ao passo que a China, e isso também é um movimento da Rússia, buscam produzir estabilidade internacional", destaca.

 

BRICS seria um contrapeso à dominância global do Ocidente?

 

A expansão do BRICS e sua ascensão em defesa dos interesses do Sul Global também foi um assunto bastante comentado em 2023.

Questionada se o grupo conseguiu se consolidar como um contrapeso ao Ocidente, Analúcia diz considerar que esse não é o objetivo do BRICS.

"Acho que o BRICS não se constitui como um bloco. Eu acho que nós temos ali uma agremiação, por assim dizer, de países que têm interesses em comum, especialmente no que diz respeito a essa grande questão, ou seja, a necessidade de relações. E aí eu vou partir sobre o ponto de vista econômico de uma nova ordem econômica que diminua os níveis de desigualdade internacional."

Ela acrescenta que, ainda em 2023, o mundo precisa lidar com questões relacionadas ao colonialismo, ocupação territorial e neocolonialismo.

"Ações políticas extremamente nocivas à capacidade de desenvolvimento de Estados e sociedades. Os conflitos, eles não são obra de outra coisa senão desses níveis de desigualdade que existem no mundo, dos níveis de oportunidade que os países têm. Então, eu acho que o BRICS se coloca como um agrupamento de países que pautam coletivamente temas que são de interesse coletivo."

Ela diz que a tendência para os próximos anos é que o BRICS cresça ainda mais, contribuindo para o fortalecimento regional em diferentes continentes.

"Que ele vá comportando outros países que tenham justamente uma posição e uma visão convergente que possam ter algum nível de influência sobre as suas regiões."

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FONTE:   https://sputniknewsbr.com.br/20231228/para-analistas-eua-encolheram-na-geopolitica-global-em-2023-enquanto-russia-e-china-se-destacaram-32259010.html

 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

A CHINA SUPEROU O SUBDESENVOLVIMENTO

 

Como quebrar o círculo vicioso do subdesenvolvimento no Sul Global

O pesquisador Marco Fernandes mostra como a China superou o subdesenvolvimento

Publicado no Brasil 247 em 22 de dezembro de 2023

 

A China superou o subdesenvolvimento

 


Foto: Xinhua

 

Por Marco Fernandes (*), em Tricontinental - Diz um ditado popular chinês contemporâneo que “em 1949, o socialismo salvou a China. No século XXI, a China vai salvar o socialismo”. Em um discurso de 2018 a novos membros do Comitê Central, o presidente chinês Xi Jinping (习近平) lembrou que, após o colapso da União Soviética, se a experiência chinesa tivesse fracassado, “então a prática do socialismo teria que vagar na escuridão por um longo tempo e, de novo, seria um espectro”, como disse Marx em sua época.

Mas quais as principais características do socialismo com características chinesas? Por que mercado e planejamento não são antagônicos e como podem ser integrados em uma estratégia socialista? O que diferencia o socialismo chinês do modelo soviético? Quais os maiores desafios que a China enfrenta diante das contradições que o mercado impõe ao socialismo? A experiência chinesa pode inspirar outros países no caminho do socialismo? Estas são algumas das questões centrais levantadas pelos dois ensaios que publicamos no quarto número da edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横): o primeiro de Yang Ping (杨平), editor-chefe da edição chinesa da Wenhua Zongheng, e o segundo de Pan Shiwei (潘世), presidente honorário do Instituto de Marxismo Chinês da Academia de Ciências Sociais de Xangai.No artigo A terceira onda do socialismo, Yang Ping sugere que, durante o último século e meio, existiram três ondas de socialismo científico: o surgimento do Marxismo e de movimentos revolucionários na Europa, durante o século XIX (primeira onda); a criação de um grande número de Estados socialistas e movimentos de libertação nacional, durante o século XX (segunda onda); e, diante do colapso da experiência soviética e do esgotamento do socialismo da Era Mao Tse Tung, o surgimento de uma economia socialista de mercado, iniciada com a reforma e abertura da China, nos anos 1970 (terceira onda). Da mesma forma, no artigo As novas formas do socialismo no século XXI, Pan Shiwei afirma que surgiram três formas principais de socialismo: o socialismo clássico nos centros do capitalismo europeu, as formas transformadoras de socialismo nas colônias e semi-colônias e uma nova forma de socialismo que está se desenvolvendo na China e tem como objetivo superar o capitalismo. Ambos os autores acreditam que a nova onda, ou nova forma de socialismo, está em seus estágios iniciais e discutem como ela pode fortalecer ainda mais o socialismo na China e servir de inspiração para outras nações do mundo.

Em tempos de declínio econômico das potências imperialistas, mergulhadas em um frenesi bélico na Ucrânia e na Palestina – que corre o risco de se expandir para o Leste e Sudeste da Ásia e afundar a humanidade na terceira guerra mundial –, quais são as oportunidades que a ascensão da China socialista traz para o Sul Global? Dialogando com as perspectivas dos autores dos artigos, propomos algumas ideias nesta nota editorial.

Feitos e desafios do socialismo chinês

Após 45 anos de reforma e abertura, o socialismo de mercado transformou a China em uma potência industrial, tecnológica, financeira, comercial e militar. Pelo PIB por paridade de poder de compra (PPC), uma medida mais real para a comparação de economias nacionais, a China já supera os Estados Unidos com certa folga. Em 2002, o PIB PPC da China foi de US$30,32 trilhões contra US$25,46 trilhões dos EUA. Ou seja, o PIB PPC chinês equivale a 119% do estadunidense. Para que tenhamos uma dimensão histórica desse feito para o campo socialista, em 1975, no auge econômico da URSS, seu PIB PPC chegou, no máximo, a 58% do PIB dos EUA.

A China é a maior potência industrial desde o final dos anos 2000. O país produziu, no ano passado, 26,7% de toda a manufatura do mundo, seguida pelos EUA (15,4%), Japão (5,3%) e Alemanha (4%). Ou seja, a produção industrial chinesa supera a soma da produção das três maiores nações industriais do Norte Global. Os chineses também deram saltos tecnológicos impressionantes nas últimas décadas, passando a liderar mundialmente setores como telecomunicações (5G), trens de alta velocidade, energias renováveis, refino de minerais e veículos elétricos, além de terem atingido estágios avançados em muitos outros setores, incluindo inteligência artificial, computação quântica, biotecnologia e construção civil.

A China é a maior potência comercial do mundo, sendo a principal parceira comercial de mais de 120 países. Em 2022, exportou US$6,28 trilhões, com um superávit de US$860 bilhões, fechando o ano com reservas internacionais de US$3,13 trilhões. Nas finanças, o Estado chinês controla os quatro maiores bancos do mundo – Industrial and Commercial Bank of China (ICBC), China Construction Bank (CCB), Agricultural Bank of China (ABC) e Bank of China –, com um total de cerca de US$20 trilhões em ativos. O país tornou-se a maior fonte de financiamento para o desenvolvimento global, superando todos os países e todas as instituições multilaterais, inclusive o Banco Mundial.

Por fim, a China foi capaz de um dos maiores feitos da história: a retirada de 850 milhões de pessoas da extrema pobreza entre 1978 e 2021. Segundo o Banco Mundial, isso corresponde a 76% de toda a população mundial que se encontrava nesta situação no período.

No entanto, a China ainda é um país em desenvolvimento e enfrenta enormes desafios econômicos, sociais e políticos para avançar além do “estágio primário” do socialismo, como eles assim definem. Esses desafios incluem necessidade de reduzir a desigualdade entre campo e cidade e entre regiões do país (o Leste é muito mais desenvolvido do que o Oeste), de elevar a renda e o bem-estar social dos mais de 300 milhões de trabalhadores migrantes, de reduzir o alto desemprego na juventude, de diminuir a enorme dependência econômica do setor imobiliário sob a lógica financeirizada, de enfrentar as consequências ambientais causadas por uma industrialização hiper acelerada, de se adaptar ao envelhecimento da população e à desaceleração da taxa de natalidade, de retomar a formação política marxista no Partido Comunista da China e entre as massas (uma das prioridade de Xi Jinping), e de enfrentar as táticas de guerra híbrida aplicadas pelas potências ocidentais para tentar conter o avanço chinês.

Uma onda socialista ou desenvolvimentista no Sul Global?

A China conseguiu quebrar a maldição do Terceiro Mundo e rompeu o círculo vicioso de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Após décadas de independência de sua condição de colônias das potências ocidentais, esse círculo vicioso continua definindo a experiência dos países da periferia do sistema capitalista. Graças a seu tremendo sucesso econômico, cada vez mais países do Sul Global veem a China como um exemplo que poderia ser seguido – levando-se em conta as particularidades locais –, mas também como uma possível parceira na busca de uma estratégia desenvolvimentista. A China, por sua vez, move-se cada vez mais para construir estas parcerias.

Em outubro de 2022, o relatório do 20º Congresso Nacional do PCCh apresentou uma contundente crítica marxista ao modelo ocidental de modernização, baseado na colonização, pilhagem, escravidão e exploração predatória dos recursos naturais e dos povos do Sul Global. Esse modelo não apenas serviu de base para os processos de industrialização da Europa e dos Estados Unidos, mas também para sua dominação econômica, política e militar sobre o resto do mundo, resultando na formação do imperialismo. Em resposta, a China elaborou o “caminho da modernização chinesa”, que pode ser caracterizado pelos princípios da prosperidade compartilhada entre uma população gigantesca, do progresso material e ético-cultural, da harmonia entre humanos e natureza e do desenvolvimento pacífico.

Essa consciência histórica formata a política de Estado da China, particularmente a Nova Rota da Seda (NRS), lançada em 2013, visando impulsionar o desenvolvimento do oeste chinês a partir de sua conexão com a Ásia Central. “Atravessando o rio, enquanto sente as pedras”, ao estilo Deng Xiaoping (邓小平), o governo chinês percebeu que esse poderia ser o pilar de sua estratégia para o Sul Global, assolado por mais de três décadas de neoliberalismo. Dez anos e centenas de bilhões de dólares depois, essa direção foi reforçada no 20º Congresso Nacional do PCCh, cujo relatório afirma o comprometimento da China em atuar para diminuir a distância entre o Norte Global e o Sul Global, apoiando a aceleração do desenvolvimento nas nações do Sul Global.

As recentes movimentações apontam para um estágio mais elevado de cooperação entre a China e os países em desenvolvimento. Por exemplo, na cúpula entre a China e países africanos – logo após a 15ª cúpula do BRICS, em agosto – líderes da África expressaram reconhecimento por todos os esforços chineses nas últimas duas décadas para promover a infraestrutura do continente, mas pediram à China que mude seu foco de investimento da infraestrutura para a industrialização.1Ver “As relações entre a China e a África na era da Nova Rota da Seda”, Wenhua Zongheng (文化纵横), edição internacional 1, número 3 (outubro de 2023). Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/wenhua-zongheng-2023-3-editoria-as-relacoes-entre-a-china-e-a-africa-na-era-da-nova-rota-da-sedal/.

NOTA DE RODAPÉ

(Xi Jinping concordou com a proposta. A propósito, debate semelhante foi feito na cúpula Rússia-África, em julho, confirmando a atual estratégia africana.)

Em grande parte do Sul Global, a necessidade de industrialização volta a ocupar o debate público, desde países como o Brasil e a África do Sul, até países como a Bolívia e o Zimbábue. No primeiro caso, são países que já tiveram indústrias sólidas e diversificadas, mas que sofreram um processo de desindustrialização nas últimas décadas. No segundo caso, apesar de Bolívia e Zimbábue possuírem abundantes recursos naturais, nunca tiveram condições de acumular capital suficiente para iniciar um processo de industrialização consistente, devido à dinâmica de exploração pelas potências ocidentais.

Inúmeras parcerias entre empresas chinesas estatais e privadas com países do Sul Global têm sido estabelecidas no último período, muitas delas relacionadas ao processamento local de minerais de alta demanda, ou à produção de carros elétricos. Por exemplo, bilhões de dólares estão sendo investidos pela China em fábricas de processamento de lítio na Bolívia, em uma mega usina siderúrgica e uma fábrica de lítio no Zimbábue, em plantas de processamento de níquel na Indonésia e um hub de fábricas de veículos elétricos no Marrocos. Há uma grande expectativa de que iniciativas regionais, como a NRS, o BRICS 11 e a Organização de Cooperação de Xangai, possam servir como alavancas desse processo, ainda que enfrentem oposição das potências ocidentais.

Sem esse esforço de industrialização, os povos do Sul Global não conseguirão superar os profundos problemas que ainda enfrentam, como a fome, o desemprego, a falta de acesso à educação, à moradia e à saúde de qualidade. Por outro lado, isso não será possível apenas pelas relações com a China (ou com a Rússia). Sem o fortalecimento dos projetos populares nacionais, contando com ampla participação de setores sociais progressistas, sobretudo das classes populares, dificilmente os frutos de um eventual ciclo de desenvolvimento serão colhidos por aqueles que mais precisam. Porém, são raros os países do Sul Global que vivem processo de ascensão das lutas de massas. Por isso, ainda é muito difícil vislumbrar uma “terceira onda socialista” global, mas uma nova onda desenvolvimentista – que pode tomar um caráter progressista – parece viável. A contradição principal da nossa época é o imperialismo. E todos os esforços para enfrentá-lo são estratégicos.

Não há dúvida de que a China, assim como a Rússia, têm sido tão atacadas pelas potências imperialistas exatamente porque construíram fortes nações soberanas nas últimas décadas. Além disso, a China e, em menor medida, a Rússia oferecem um leque de capacidades industriais, tecnológicas, financeiras, comunicacionais e militares às quais o Sul Global nunca teve acesso. Isso amplia as opções do Sul Global e tem o potencial de enfraquecer a hegemonia das potências ocidentais. Não foi exatamente isso que faltou para o sucesso do “projeto do terceiro mundo” entre os anos 1950 e 1970, quando ocorreu a grande onda de processos de libertação nacional e de desenvolvimentismo, cujos sonhos foram abortados pelo neoliberalismo e pela máquina de guerra do Império?

Notas

(1) Ver “As relações entre a China e a África na era da Nova Rota da Seda”, Wenhua Zongheng (文化纵横), edição internacional 1, número 3 (outubro de 2023). Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/wenhua-zongheng-2023-3-editoria-as-relacoes-entre-a-china-e-a-africa-na-era-da-nova-rota-da-sedal/.

(*) Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, co-fundador do Coletivo Dongsheng, membro da campanha Basta de Guerra Fria. Colabora com artigos e entrevistas para diversas mídias, sobretudo no Brasil, China e Rússia. Bacharel e Mestre em História, Doutor em Psicologia Social (todos pela Universidade de São Paulo, Brasil). Contribui com organizações populares do Sul Global. Mora em Pequim.

FONTE:   https://www.brasil247.com/ideias/como-quebrar-o-circulo-vicioso-do-subdesenvolvimento-no-sul-global