Capa da edição de 2013. Esta semana chegou-me às mãos um livro muito importante: A CIA e a guerra fria cultural. [1]
por Miguel Urbano Rodrigues
Desconhecido
em Portugal, gostaria que fosse editado no nosso país para ser lido por
milhares de pessoas desinformadas por um sistema mediático perverso que
apresenta uma imagem deformada do sistema de poder dos Estados Unidos.
O título é
enganador. Ao iniciar a leitura estava persuadido de que se tratava de
mais uma obra de divulgação de ações criminosas da CIA. Daí a surpresa.
O livro de
Frances Stonor Saunders é muito mais ambicioso. A autora, jornalista e
historiadora britânica, dedicou cinco anos à investigação de um tema
muito mal conhecido: as atividades encobertas desenvolvidas pela CIA no
mundo da cultura para promover o descrédito do comunismo e mobilizar
contra a União Soviética grande parte da intelligentsia progressista
ocidental.
Em 1945, o
prestígio da URSS nos EUA era enorme. A maioria do seu povo sentia uma
grande simpatia, sobretudo apos a batalha de Stalinegrado, pelo país que
desempenhara um papel decisivo na derrota do Reich nazi.
Essa
realidade era muito incómoda para a elite do poder estado-unidense. A
Doutrina Truman e o Plano Marshall demonstraram ser manifestamente
insuficientes para alterar a atitude da classe média estadunidense
perante a União Soviética.
Os cérebros
ligados ao poder em Washington concluíram pela necessidade urgente de
convencer o homem comum norte-americano de que o aliado na guerra
durante quatro anos, de 1941 a 1945, era, afinal, um perigoso inimigo.
A elite que
se propunha a reorganizar o mundo sob a égide dos EUA em torno dos seus
"valores" estava consciente de que esse objetivo somente poderia ser
atingido se o Ocidente capitalista fosse empurrado para a conclusão de
que o comunismo, "obscurantista, desumano, agressivo", era a grande
ameaça para a humanidade, pelo que se tornava imprescindível combatê-lo.
A Oficina de
Serviços Estratégicos-OSS, que funcionou durante a guerra como uma
Gestapo americana, foi de certa maneira uma predecessora da CIA. O seu
chefe, o general William Donovan, reuniu à sua volta destacadas figuras
da aristocracia do capital como os filhos do banqueiro JP Morgan, os
Vanderbilt, os Dupont, e intelectuais como George Kenan e Charles
Bohlen.
Uma das
primeiras iniciativas da OSS foi o recrutamento de militares e civis
nazis. Dezenas de altas personalidades alemãs passaram de criminosos de
guerra a aliados de confiança. Um caso expressivo:o general das SS
Reinhardt Behlen, chefe dos serviços secretos nazis que, em vez de ser
preso e julgado, recebeu o tratamento de colaborador privilegiado da
OSS.
No seu livro,
Frances Saunders dedica os primeiros capítulos às campanhas
desenvolvidas por Donovan, com o apoio de Truman, para demonstrar aos
europeus que os EUA eram uma sociedade onde a cultura ocidental lançara
raízes profundas, contrapondo essa imagem à "barbárie soviética". O Bem
contra o Mal.
A literatura,
a música, a pintura, a arquitectura, o ballet dos EUA foram amplamente
divulgados na Alemanha, na França, na Itália e noutros países.
Simultaneamente, antecipando-se a eventuais acusações de patrioteirismo,
obras de Aristófanes, Goethe, Schiller, Thomas Mann, Ibsen, Strindberg,
Shaw, Gorki, Gogol eram difundidas numa prova inequívoca do amor dos
EUA pela cultura universal.
Essa ofensiva cultural não produziu, porem, os resultados previstos.
Coube à CIA a
tarefa de levar adiante no contexto da Guerra Fria um projeto muito
mais complexo e ambicioso, também na frente da cultura.
Criada em
1947 pela Lei de Segurança Nacional, a Agencia Central de
Inteligência-CIA assumiu as proporções de um polvo gigantesco.
Inicialmente não estava autorizada a intervir em assuntos de outros
países. Truman e os seus sucessores permitiram que ela desenvolvesse
atividades de espionagem, e promovesse operações militares. Hoje possui
linhas aéreas, emissoras de TV e rádio, jornais, companhias de seguros,
imobiliárias, bancos.
Em l948 foi
criado na Agencia um Escritório de Coordenação de Politicas – OPC com a
missão específica de realizar "operações secretas" em múltiplas áreas.
Esse estranho
departamento especial cresceu vertiginosamente. Em três anos o seu
pessoal passou de 302 pessoas a 2812,alem de 3142 assalariados no
estrangeiro. O orçamento elevou-se de 4,7 milhões de dólares para 82
milhões.
O ideólogo do
sistema era então George Kennan, o ex embaixador em Moscovo, fanático
anticomunista, arquitecto do Plano Marshall que desempenhou um grande
papel na concepção e funcionamento da Guerra-Fria.
Foi um dos
pais da CIA e consultor da OPC. Coube-lhe formular o conceito da
"mentira necessária" como componente fundamental da diplomacia
estado-unidense.
Uma das
operações secretas mais difíceis foi a concebida para utilizar a
esquerda não comunista em campanhas anticomunistas. Secreta porque os
intelectuais envolvidos em campanhas contra a União Soviética deveriam
ser manipulados habilidosamente. A OPC atuava nos bastidores, invisível.
O governo americano, as embaixadas dos EUA, os grandes media norte-
americanos abstinham-se inclusive de comentar elogiosamente as tomadas
de posição antissoviéticas de escritores e artistas europeus, muitos dos
quais eram ex-comunistas. Tudo se passava como se as conferencias,
seminários, festivais manifestações e outros eventos em que participavam
esses intelectuais fossem espontâneos, nascidos de iniciativas suas.
Mas a
realidade era muito diferente. Oculta, era a CIA quem planeava a
orquestração anticomunista, quem financiava generosamente (com o
Departamento de Estado) essas campanhas.
Frances
Saunders desce a minúcias ao descrever o esforço desenvolvido pela OPC
através de intermediários respeitáveis para conseguir que grandes nomes
da esquerda aderissem a iniciativas de cariz anti-soviético.
Nos EUA
prestaram-se a esse papel escritores prestigiados como John Steinbeck,
John dos Passos, Gertrude Stein, Schlesinger, W.H.Auden, Arthur Miller, e
orquestras sinfónicas, museus, etc. Os intelectuais trotsquistas
aderiram massivamente. Na Europa, foram envolvidos na teia
anti-soviética: André Gide, Albert Camus, Elsa Triolet, Andre Malraux,
Simone de Beauvoir, Raymond Aron, Georges Orwell, Aldous Huxley,
Laurence Olivier, Jean Cocteau, Salvador de Madariaga, Claude Debussy,
Denis de Rougemont, Milan Kundera, e muitos outros. E – chocante, mas
real - Aragon, Sartre, Bertrand Russell.
A intervenção
na Hungria das tropas do Tratado de Varsóvia, em 1956 criou na Europa
uma atmosfera favorável à intensificação da Guerra Fria.
Entre os
muitos livros cuja publicação foi promovida pela CIA, um deles, The God
That Failed (O Deus Que Falhou) foi best-seller mundial. Traduzido em
dezenas de línguas vendeu milhões de exemplares. Partiu da CIA a ideia
de reunir seis ensaios (a maioria já publicados na revista alemã Der
Monat controlada pela Agencia) de Arthur Koestler, Ignazio Silone, Andre
Gide, Richard Wright, Stephen Spender, todos eles escritores famosos
que haviam sido militantes ou simpatizantes comunistas.
"Além de ser
uma espécie de confissão coletiva – escreve Frances Saunders – o livro
era um ato de recusa, uma rejeição do estalinismo no momento em que para
muitos essa atitude era ainda uma heresia. Foi um livro de importância
transcendental no pós-guerra e aparecer nele foi um passaporte válido
para o mundo oficial da cultura nos vinte anos seguintes".
Koestler, que
adquirira enorme notoriedade com o seu romance O Zero e o Infinito,
Milovan Djilas e George Orwell, autor do 1984, destacaram-se nessas
iniciativas pela sua febre anticomunista.
O primeiro,
que havia sido nos anos 30 um dedicado militante do Partido Comunista
Alemão-DKP, colaborou intimamente com a CIA e foi conselheiro do Foreign
Office em campanhas anti-soviéticas.
Comités e
Associações constituídos para defender a Cultura, a Liberdade e a
Democracia, mas cujo objetivo era a promoção de iniciativas
anticomunistas, permitiram então à CIA (sempre atuando nos bastidores)
exercer uma grande influência sobre uma parcela importante da "esquerda
não comunista".
Para isso contou com a colaboração e a ajuda financeira de organizações como a Fundação Ford.
Das muitas
revistas criadas para "promover a cultura", uma delas, a britânica
Encounter, alcançou prestígio mundial. Dirigida por Stephen Spender, um
poeta inglês, foi concebida para funcionar como um instrumento político
anticomunista no mundo da cultura. E atingiu o objectivo. Durante anos
colaboram nela eminentes figuras da intelligentsia mundial.
Nem o
diretor, Spender, conhecia a origem do financiamento. Quando uma
inconfidência revelou, nas vésperas da Assembleia do Congresso pela
Liberdade da Cultura, a ponte entre Encounter a CIA e as elites
financeiras dos EUA, o escândalo foi maiúsculo.
Em reuniões
desse Congresso fantasmático, ideado pela CIA, participaram, aliás,
durante anos grandes nomes da esquerda não comunista. Na prática foi uma
tribuna anticomunista.
No seu belo
livro, Frances Saunders dedica alguns capítulos a ações encobertas da
CIA não comentadas neste artigo. Cita nomeadamente várias Fundações,
Universidades, congressistas e governantes que apoiaram iniciativas
criminosas da famosa Agencia. Um mar de lama tóxica.
E dedica
especial atenção aos quadros – ideólogos e executantes – que idearam as
campanhas anti-soviéticas, fazendo delas uma poderosa arma da Guerra
Fria.
Cito alguns
nomes dessa máfia política praticamente desconhecida em Portugal: Lasky,
Josselson, Nabokov, Kristol, Hook, Wisner.
Termino transcrevendo o
último parágrafo do livro de Frances:
"Sob a (ainda
não) estudada nostalgia dos "Dias dourados" da inteligência americana
havia uma verdade muito mais demolidora: as mesmas pessoas que liam
Dante, estudaram em Yale e se educaram na virtude cívica, recrutaram
nazis, manipularam o resultado de eleições democráticas, proporcionaram
LSD a pessoas inocentes, abriram o correio de milhares de cidadãos
americanos, derrubaram governos, apoiaram ditaduras, conceberam
assassínios e organizaram o desastre da Baia dos Porcos.
Em nome de quê? perguntava um crítico: "Não da virtude cívica, mas do império".
Vila Nova de Gaia, 9/Agosto/2013
[1] Frances Stonor Saunders, Who Paid the Piper? The CIA and the Cultural Cold War , Granta Books, United Kingdom, 1999. Em 2013, a Random House Mondadori lançou em Bogotá a edição colombiana, com 597 páginas:
www.megustaleer.com/ficha/C922362/la-cia-y-la-guerra-fria-cultural
O original encontra-se em www.odiario.info/?p=2980
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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