terça-feira, 1 de outubro de 2013

A crise do capitalismo no Centro e na Periferia


A crise do capitalismo no Centro e na Periferia

Artigo ampliado. Original publicado no Diário do Aço em 30/09/2013
      A atual crise do capitalismo deflagrada pela crise dos subprime imobiliário nos EUA a partir de 2008, na verdade começou muito antes disso e se espalhou pelo mundo todo devido ao processo de globalização iniciado anteriormente. Mas desta vez a crise capitalista teve impactos diferenciados no sistema como um todo, basicamente atacou mais profundamente o centro do sistema – o mundo desenvolvido; mas também provocou estragos no resto do mundo – a periferia do sistema. Para o economista Amir Khair, mestre pela FGV, “o socorro do Estado ao sistema financeiro para evitar o colapso por ele engendrado ampliou déficits fiscais e endividamentos públicos sem precedentes” nos países centrais. Para ele, os países desenvolvidos cresciam antes da crise (período 2004/2008) a 2,3% aa, passando para depois da crise (período 2009/2012) a crescer apenas 0,5% aa.; uma queda de 77%. Nos EUA e Alemanha a queda foi de 53%, na área do euro foi de 147%, e no mundo a queda foi de 37%. 

       Por outro lado, a crise atingiu todos os países emergentes, desacelerando o crescimento econômico que vinham ostentando. Antes da crise, no período 2004/2008 a média anual de crescimento desses países foi de 7,5% e caiu para 5,4% no período 2009/2012, com perda de 2,1 pontos ou 29%. Uma queda bem menor do que os países centrais e menor do que a média mundial. O Brasil sentiu o golpe e o impacto da crise. Nos mesmos períodos o crescimento passou de 4,8% para 2,7%, com perda de 2,1 pontos ou 44%, portanto acima dos países emergentes, mas abaixo dos países centrais. 

      O geógrafo britânico David Harvey é um dos pensadores mais influentes e mais lidos da atualidade. Une geografia urbana, marxismo e filosofia social na compreensão das contradições do mundo contemporâneo. Professor na John Hopkins e Oxford, seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent como um dos 50 trabalhos mais importantes no pós-guerra. Seu desenho no YouTube é bastante didático e analisa a crise atual do capitalismo, tendo mais de 2,3 milhões de visualizações. Segundo ele a crise atual teve como base a crise dos anos 70 e é resultado do excessivo poder dos trabalhadores e sindicatos do período pós-guerra (1945-1975), período considerado keynesiano, de grande intervenção do Estado na economia, mas em que houve melhoria das condições sociais dos trabalhadores : maiores salários, benefícios sociais, participação nos lucros, etc. Portanto maior carga tributária; enfim mais Estado e mais bem estar social. Contudo os capitalistas não gostavam porque perdiam poder e tinham menos lucro.
       A crise dos anos 70 põe a nu o período keynesiano e suas contradições capital/trabalho. E a tese é que em muitos aspectos a forma da crise atual é ditada muito pela forma como saímos da última. O problema na década de 1970 foi poder excessivo dos trabalhadores em relação ao capital. Assim a saída desta crise foi disciplinar os trabalhadores. E nós sabemos como isso foi conseguido. Foi feito através de off-shores foi adotado por Thatcher e Reagan e foi feito pela doutrina neo-liberal. E de todas as maneiras e feitios. Mas em 1985 ou 86 a questão do trabalho estava essencialmente resolvida para o capital. Tinha acesso a todas as fontes de trabalho do mundo. Ninguém hoje, citou sindicatos gananciosos como a raiz da crise. Ninguém hoje está dizendo “tem algo a ver com o poder excessivo do trabalho”. Se há algo, é o poder excessivo do capital. E em particular do excessivo poder do capital financeiro, que é a raiz do problema. E então, como é que isto aconteceu? Bem, desde 1970 temos estado numa fase que chamamos de “repressão salarial” em que os salários permaneceram estagnados, a participação dos salários na receita nacional vem paulatinamente diminuindo em todos os países da OCDE. Assim, a partir de Margaret Thatcher e Ronald Reagan se inicia um novo ciclo nas economias ocidentais onde se implanta o modelo neoliberal, desmontando o Estado keynesiano. Menos Estado e mais mercado. Os governos neoliberais tentam destruir todos os ganhos trabalhistas conquistados no período anterior por meio da desregulamentação do mercado de trabalho e do capital, p.ex. abrindo os mercados americano e europeu aos imigrantes para aumentar a oferta de trabalho no intuito de diminuir os salários, etc. Não deu muito certo, então partiram para o deslocamento geográfico da globalização. As multinacionais se deslocam para a China, onde a mão de obra é mais barata. A produção diminui no centro e aumenta na periferia, onde o custo de mão de obra é bem menor.

       No centro os salários caem a partir dos anos 80, 90. Então se diminui os salários, cria-se o problema de onde é que a procura vai surgir. A a resposta foi : “Bem, vem daí os cartões de crédito. Vamos dar cartões de crédito a toda a gente. Então ultrapassamos se preferir, o problema da procura efetiva, ao encher a economia de crédito. Pra não diminuir o consumo o sistema financeiro desenvolve novos produtos para endividar os trabalhadores – o crédito aumenta, a dívida dos trabalhadores triplica nestes 20,30 anos. Assim toda a história do capitalismo tem sido a história da engenharia financeira ou da inovação financeira. E a inovação financeira tem também o efeito de dar poder aos agentes financeiros .A engenharia financeira fica mais sofisticada – os financistas ganham mais poder – a renda se concentra nas mãos dos banqueiros, diminui o consumo, diminui a produção, fecham-se fábricas. E se se observa os lucros financeiros dos EUA , eles dispararam a partir dos anos 1990. E os lucros na produção estavam descendo. Basicamente lixou-se para a indústria para manter os financiadores felizes.

       Como diz Harvey no documentário do Youtube : “O ganho dos ricos se acelerou neste país. Somente no ano passado, o que aconteceu é que os principais proprietários de fundos de cobertura obtiveram remunerações de 3 bilhões cada, num só ano. E eu que pensava ter sido obsceno e insano há alguns anos atrás quando recebiam 250 milhões cada.” … Como boa parte do consumo dos americanos são de imóveis (68% dos americanos tem casa própria) a crise estoura no crédito imobiliário. Lá na ponta alguém tem que pagar. Os trabalhadores perdem suas casas, os bancos cobram e deixam de receber, começam a quebrar.  Nos últimos 30 anos o capitalismo deslocou seu centro de atividades de investimentos do setor produtivo para o setor financeiro especulativo (ativos e valorização de ativos) aluguel de terras, preços de imóveis e até mesmo o mercado de arte.... O setor financeiro inventou várias inovações que permitem que se ganhe dinheiro jogando com o dinheiro. Ou seja vivemos em um mundo muito propenso a crises e elas diziam quase sempre respeito a valores fictícios....dívidas...muitas das crises foram crises urbanas, pois grande parte dos investimentos urbanos é especulativo. Desta vez foi a crise das hipotecas da habitação. Aí entra o governo pra ajudar os bancos. Os governos se endividam, ampliam seus déficits fiscais para salvar o sistema financeiro. Ou seja dinheiro público vindo dos contribuintes vai parar nas mãos do setor privado para evitar a quebradeira das instituições financeiras. A crise está formada e se propaga dos EUA à Europa. 
 
       Depois atinge o resto do mundo pela queda na demanda geral efetiva. Nos países emergentes o ritmo de crescimento diminui, mas continua positivo, porque são atingidos apenas pela demanda externa de seus produtos. Na América Latina, ao contrário dos países centrais, o Estado não diminui e nem se endivida, permitindo uma recuperação dos salários e aumento do mercado interno, com distribuição de renda. Isto acontece porque os governos progressistas da América do Sul não adotam medidas neoliberais. Assim, a crise global os atinge com um impacto bem menor do que nos países centrais. A crise capitalista surge nos países desenvolvidos pela ganância do setor financeiro engedrado intrinsecamente pelas contradições internas do processo de acumulação de riquezas – uma crise típica do sistema capitalista. Esta crise no centro do sistema resultou numa concentração de renda e queda do poder aquisitivo dos trabalhadores e portanto da demanda efetiva. O efeito desta crise se espalha pelo resto do mundo exatamente por este resultado, queda da demanda efetiva. Os países periféricos diminuem seu comércio exterior com os países centrais, sendo atingidos desta forma pela crise capitalista.

Daniel Miranda Soares é economista e administrador público aposentado, com mestrado pela UFV.

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