Dalmo Dallari sobre Gilmar Mendes: “Eu não avisei?”
Há dez anos, o jurista e professor da USP publicou artigo que gerou polêmica em que sustentava: “Gilmar Mendes no STF é a degradação do Judiciário”. Agora, em entrevista ao 247, ele reafirma e diz mais: “Há algo errado quando um ministro do Supremo vive na mídia”.
Em 2010, na véspera das eleições presidenciais, o Supremo se reunir para julgar a exigência da apresentação de dois documentos para votar nas eleições. O placar estava 7 a 0 quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo. O julgamento foi interrompido. Mais tarde, circulou a informação, confirmada depois em reportagem da Folha de S. Paulo, de que a decisão de Mendes foi tomada depois de conversar com o então candidato do PSDB, José Serra, por telefone. Na época, Dallari não quis comentar sobre a conversa ou não com o candidato tucano e suas implicações (“Como advogado, raciocino em cima de provas”), mas contestou a atitude de Mendes: “Do ponto jurídico, é uma decisão totalmente desprovida de fundamento. O pedido de vistas não tinha razão jurídica alguma, não havia dúvida a ser dirimida”.
Mas a maior polêmica é a atual, envolvendo o político mais popular do
Brasil, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acusado por Mendes de
chantagem e pressão ao STF. Procurado pelo 247, a quem concedeu
entrevista, Dallari não deixa de reconhecer: “Eu não avisei?”
Veja alguns pontos destacados pelo jurista na entrevista ao 247:
VERDADE OU MENTIRA?
“Não posso fazer um julgamento categórico sobre o que disse o ministro
Gilmar Mendes. Não se sabe onde está a verdade. Se tivesse mais
segurança quanto aos fatos ocorridos poderia dizer melhor. Mas, de
qualquer maneira, dá para afirmar de cara duas coisas: a primeira é que
não dá, definitivamente, para um ministro do Supremo sair polemizando
toda hora para a imprensa, e num nível que parece confronto pessoal. É
algo que não faz parte das funções de um ministro do Supremo. A outra
coisa é que as acusações de Gilmar são extremamente duvidosas. Feitas
com atraso e sem o mais básico, que é a confirmação da única testemunha.
Pelo contrário: o ministro Jobim (Nelson Jobim, que foi ministro de
FHC, de Lula e do próprio STF) negou o conteúdo do que foi denunciado.
Leia abaixo o artigo que Dalmo de Abreu Dallari publicou na Folha, em 8 de maio de 2002:
Degradação do Judiciário
DALMO DE ABREU DALLARI
Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se
não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por
parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições efetivas para
impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse modo, os
direitos consagrados nos dispositivos constitucionais.
Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de
protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do
mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais
distanciado da ética.
Essas considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o que tem sido
afirmado e reafirmado por todos os teóricos do Estado democrático de
Direito, são necessárias e oportunas em face da notícia de que o
presidente da República, com afoiteza e imprudência muito estranhas,
encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal
Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do
Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à
Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.
Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em
afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no
Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional.
Por isso é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves, a fim
de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das autoridades o
cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições constitucionais, com a
firmeza e transparência indispensáveis num sistema democrático.
Segundo vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa, estaria sendo
montada uma grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal,
tornando-o completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo
depois do término de seu mandato. Um sinal dessa investida seria a
indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar
Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República, para a
próxima vaga na Suprema Corte. Além da estranha afoiteza do presidente
-pois a indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da
vaga-, o nome indicado está longe de preencher os requisitos necessários
para que alguém seja membro da mais alta corte do país.
É oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a
constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas e terá
papel fundamental na promoção da responsabilidade do presidente da
República pela prática de ilegalidades e corrupção.
É importante assinalar que aquele alto funcionário do Executivo
especializou-se em “inventar” soluções jurídicas no interesse do
governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que
nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando
Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público
da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na
tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando
inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, “inventaram” uma tese
jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando
Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais
recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em
outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem
decisões judiciais.
Medidas desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do advogado-geral
da União, muitas vezes eram claramente inconstitucionais e deram
fundamento para a concessão de liminares e decisões de juízes e
tribunais, contra atos de autoridades federais.
Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros
pronunciamentos pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e
tribunais, o que culminou com sua afirmação textual de que o sistema
judiciário brasileiro é um “manicômio judiciário”.
Obviamente isso ofendeu gravemente a todos os juízes brasileiros ciosos
de sua dignidade, o que ficou claramente expresso em artigo publicado no
“Informe”, veículo de divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª
Região (edição 107, dezembro de 2001). Num texto sereno e objetivo,
significativamente intitulado “Manicômio Judiciário” e assinado pelo
presidente daquele tribunal, observa-se que “não são decisões injustas
que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral
da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo”.
E não faltaram injúrias aos advogados, pois, na opinião do dr. Gilmar
Mendes, toda liminar concedida contra ato do governo federal é produto
de conluio corrupto entre advogados e juízes, sócios na “indústria de
liminares”.
A par desse desrespeito pelas instituições jurídicas, existe mais um
problema ético. Revelou a revista “Época” (22/4/ 02, pág. 40) que a
chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o dr. Gilmar Mendes, pagou
R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público -do qual o mesmo
dr. Gilmar Mendes é um dos proprietários- para que seus subordinados lá
fizessem cursos. Isso é contrário à ética e à probidade administrativa,
estando muito longe de se enquadrar na “reputação ilibada”, exigida pelo
artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo.
A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e
submissa à consumação dessa escolha notoriamente inadequada,
contribuindo, com sua omissão, para que a arguição pública do candidato
pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja apenas uma
simulação ou “ação entre amigos”. É assim que se degradam as
instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional
democrática.
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