MARXISMO OCIDENTAL - O fetichismo da derrota
Darcy Ribeiro era um frasista excepcional, destacando-se pela capacidade de sintetizar em sentenças curtas reflexões sofisticadas sobre problemas complexos. Ao lamentar aquilo que enxergou como tentativas frustradas de contribuição para o desenvolvimento nacional, o antropólogo criou uma frase que, com algumas variações, se tornaria um dos adágios mais repetidos da esquerda brasileira: "Perdi, mas detestaria estar no lugar dos que me venceram". Não é difícil compreender a popularidade da frase.
Encharcado de purismo ideológico e autoafirmação de superioridade moral, o adágio sintetiza com perfeição um fenômeno descrito por Domenico Losurdo e Roland Boer como "fetichismo da derrota".
Em maio de 2020, o historiador Jones Manoel publicou um vídeo abordando a questão da influência da cultura cristã na constituição do universo simbólico e teórico do marxismo ocidental. Malgrado a enorme importância da igreja católica na formação da cultura, do imaginário popular e do inconsciente coletivo dos povos ocidentais, a absorção de dogmas religiosos pelo pensamento marxista ocidental ainda é um tópico pouco estudado. Essa influência é acentuada por uma particularidade histórica. Ao contrário do marxismo oriental ou soviético, o marxismo ocidental jamais conseguiu produzir uma revolução e, consequentemente, jamais teve de lidar com o poder político. Assim, seu enfoque voltou-se para as análises filosóficas, estéticas e sociológicas - onde predomina a influência do imaginário cristão -, ao mesmo tempo em que se distanciou das discussões pragmáticas sobre o cotidiano das massas e a conquista do poder político.
Uma vez que nunca conseguiu produzir uma revolução, o marxismo ocidental também desconhece as dificuldades inerentes ao processo revolucionário - isso é, nunca teve de lidar com os problemas, as falhas, as contradições de uma revolução. A consequência disso é o reforço do purismo ideológico. Do alto de um pedestal de superioridade ético-moral, o marxismo ocidental se congratula por nunca ter precisado "deturpar" o marxismo nem "sujar as mãos" com o exercício do poder político - ignorando a obviedade de que tal purismo só existe por nunca ter sido posto em prática. Afinal, a única revolução socialista vitoriosa do ocidente - a cubana - foi inteiramente influenciada pelo marxismo oriental e soviético. Mas, julgando-se o guardião da pureza da doutrina, o marxismo ocidental aponta os dedos para todos. Condena o "revisionismo chinês". Critica o "totalitarismo coreano". Maldiz a "ideologia de Estado soviética". Renega o "autoritarismo cubano".
Avançando no paralelismo entre o marxismo ocidental o imaginário cristão, Manoel nota que, da mesma forma que o cristãos renegam os fatos históricos que contradizem a narrativa da benevolência cristã, os marxistas ocidentais renegam as experiências socialistas reais para não contaminar a pureza idealizada da doutrina marxista. A negação se dá rotulando as experiências socialistas como "traições", "contrarrevolução", "revisionismo" ou "capitalismo de Estado".
Como nenhum processo revolucionário está isento de contradições e falhas, o marxismo ocidental renega todas as experiências socialistas. Tudo vira capitalismo de Estado. O socialismo passa a ser tratado como o paraíso cristão, uma utopia, uma promessa divina de perfeição inalcançável que não cabe ao marxista construir - apenas esperar acontecer. Mesmo no caso das revoluções bem sucedidas, o marxismo ocidental costuma apenas aprovar o momento glorioso da tomada do poder - abandonando-a assim que surgem as primeiras evidências materiais do processo revolucionário em desacordo com a idealização da doutrina. Manoel pontua o exemplo da dissolução da União Soviética, que chegou a ser celebrada por marxistas ocidentais por supostamente libertar o marxismo de uma experiência histórica que o degenerou, dando à doutrina uma nova chance de redenção.
Outra tendência aparentemente derivada da cristianização é a inclinação pela romantização da miséria, da morte e do sofrimento. O marxismo ocidental é viciado em cultuar o martírio e a dor. Essa tendência é observável no tratamento dispensado a duas figuras-chaves da Revolução Cubana - Che Guevara e Fidel Castro. Enquanto Che Guevara, morto durante uma sublevação fracassada na Bolívia, é tratado como um Cristo marxista - um símbolo de resistência, rebeldia e utopia -, Fidel Castro, que conseguiu efetivamente conduzir a Revolução Cubana e manter seu legado vivo por décadas, é tratado como um burocrata cheio de contradições e pecados a expiar. Da mesma forma, Salvador Allende e Hugo Chávez também recebem tratamento bastante diferentes, apesar do fato de terem trajetórias muitos parecidas. Ambos governaram com base em decretos, não raramente impondo sua vontade sobre o legislativo e o judiciário. Mas Allende morreu durante o golpe militar liderado por Pinochet, tornando-se um mártir e sendo reabilitado como um símbolo das aspirações do socialismo democrático. Já Hugo Chávez viveu o bastante para ter de lidar com as contradições das reformas que conduziu na Venezuela - sendo, portanto, desqualificado como um líder autoritário pela mesma esquerda que aplaude Allende.
Manoel propõe a história bíblica do confronto entre Davi e Golias como a base religiosa que inspira as diferentes atitudes do marxismo ocidental diante de dois exemplos de lutas anticoloniais e autonomistas - Coreia do Norte e Palestina. Malgrado o fato de que a Coreia do Norte operou, sob gestão de um governo socialista, um processo vitorioso de resistência ao imperialismo, criou uma economia forte e de estabelecer uma capacidade militar de dissuasão, o marxismo ocidental insiste em desqualificar o regime como um desvio ou traição ao purismo da doutrina. Já a Palestina, empobrecida, oprimida, privada de governo, exército e capacidade de reação, foi convertida em um símbolo universal de resistência - não raramente alimentada por imagens romantizadas de crianças armadas com pedras e estilingues para enfrentar blindados e soldados com fuzis. No Brasil, a romantização da barbárie pode ser observada no discurso de parte da esquerda marxista-leninista-maoísta que passou a desqualificar o MST e a questionar a legitimidade de suas pautas logo após o movimento se consolidar com uma mínima infraestrutura organizacional. Em seu lugar, adotaram a defesa romantizada da "resistência" da Liga dos Camponeses Pobres - descrevendo os sucessivos massacres dos seus membros como uma revolução. Para o marxismo ocidental, a esquerda não pode ser Golias - ela obrigatoriamente precisar emular um Davi desarmado, sem chance de ganhar qualquer contenda.
Manoel aborda ainda o caso exemplar da "cristandade" do marxismo ocidental - a análise feita pelo filósofo Slavoj Zizek sobre o golpe de Estado que apeou Evo Morales do poder na Bolívia. No artigo intitulado "Anatomia de um golpe", Zizek pontua como positivo o fato de que Evo Morales não revidou nem reprimiu os golpistas que o depuseram, literalmente exaltando a ausência do ímpeto revolucionário como prova de superioridade moral e definindo isso como evidência de consolidação de um socialismo democrático - quando parece mais com a aplicação literal do versículo do livro de Lucas sobre "oferecer a outra face" ao ser esbofeteado, em uma conjuntura política de quartelada de extrema direita.
Por fim, o historiador comenta que o marxismo ocidental parece ter renunciado ao objetivo da conquista do poder e ter se conformado a exercer de forma contínua a "resistência" - da mesma forma que um cristão adotaria a resignação e o conformismo enquanto aguarda a salvação vinda diretamente da intervenção divina. Assim, o marxismo ocidental exerce o que Manoel chamou de "gozo narcísico da derrota e da pureza": abre mão de participar do processo de transformação da sociedade, limitando-se a reagir às determinações alheias, e renuncia todas as experiências concretas de transição socialista, orgulhando-se de não ter nenhum vínculo teórico com as ações mundanas que poderiam comprometer sua pureza ideológica. Constrói assim, um ideário inofensivo, carente de qualquer capacidade transformadora, inútil para conduzir um processo de tomada do poder. E, ironicamente, transforma os guardiões do purismo ideológico da teoria marxista nos maiores "profanadores" da primazia do materialismo histórico e dialético, substituindo-o por um idealismo pueril e tacanho que não tem outro efeito além de elevar a altura do frágil pedestal de superioridade moral do marxismo ocidental. Ao que parece, resta rezar para que a esquerda sobreviva à queda.
FONTE: "PENSAR A HISTÓRIA" - grupo do Facebook
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